Blog do Professor Márcio

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quinta-feira, 10 de julho de 2014

Território e Poder em Paracatu - Parte VII

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross
Márcio José dos Santos

Um dos aspectos mais desconcertantes nas relações da Kinross com a comunidade paracatuense é o trato da questão do arsênio. A presença de arsênio no minério, em teores mais de 5.000 vezes superiores ao do ouro, deveria ter sido considerada, desde o início da atividade da mina, como perigosa e, sendo assim, um plano de gestão de risco ambiental deveria integrar-se ao plano de exploração. Ao contrário, a mineradora passou anos negando a existência do arsênio e, quando não pode mais fazê-lo, passou a desqualificar o problema, sob as vistas grossas das autoridades.

Na sua campanha de “esclarecimento à população”, a Kinross inseriu uma propaganda nos jornais de Paracatu, onde se lê (O Movimento, ed. 447): “A Kinross não usa arsênio em suas atividades. Faz parte da composição das rochas de Paracatu, sem oferecer risco para a população.” Ora, ninguém em sã consciência acusa a mineradora de utilizar arsênio em suas atividades; também é de conhecimento geral que o arsênio, enquanto faz parte da composição das rochas, não oferece risco à população. Mas sabemos, e os dirigentes da mineradora também sabem, que durante o tratamento químico do minério o arsênio, que antes estava numa forma não tóxica (sulfeto de arsênio), é liberado na forma de óxidos. São os óxidos de arsênio, extremamente tóxicos, produzidos pelo tratamento químico de milhões de toneladas de minério, que estão envenenando o ambiente numa escala jamais vista na face da Terra.

Mas então, caro leitor, como esse arsênio venenoso pode vir parar no seu sangue, no seu fígado, nas suas entranhas? Os principais caminhos são a água, os alimentos que você consome e o ar que você respira.

Nos países onde a legislação ambiental é menos frágil que a nossa, as instalações de rejeitos operam em circuito fechado, isto é, não liberam água de decantação do material depositado para a drenagem abaixo das barragens; além disso, há um efetivo monitoramento ambiental abaixo das barragens, principalmente a água subterrânea, e as análises ficam disponíveis nos informes anuais das empresas de mineração.

Em situação oposta, as barragens da Kinross não operam em circuito fechado, mas liberam, deixam infiltrar ou deixam extravasar água, cujos parâmetros de qualidade não são acessíveis ao público. Abaixo das barragens encontram-se populações e produtores rurais, os quais utilizam esta água para uso próprio, dessedentação de animais e produção agrícola. Quais os riscos de contaminação diante da disseminação do arsênio através da água?

Uma contaminação mais direta da população urbana se dá através do ar, que espalha nos arredores a poeira da mina. Não é apenas a poeira surgida nas detonações; vamos falar aqui de uma poeira mais insidiosa. Há muitos anos, e em volumes crescentes, sobe ao ar a poeira das estradas de terra do interior e das cercanias da Mina Morro do Ouro. Para diminuir a quantidade de poeira, da qual se queixa a população de Paracatu, a mineradora faz aspersão de água nas vias de trânsito. Mas, de uma maneira absurda, inconseqüente, os caminhões pipa colhem água em abastecedores nos tanques da área de lavra ou nas barragens. Ora, especialmente na área de lavra (Tanque C) a água é altamente contaminada por metais pesados e arsênio; é a chamada drenagem ácida de mina (DAM), que por esta condição não poderia sair do circuito. No entanto, quando esta água é aspergida nas vias, logo que a poeira seca ela é levantada pelo trânsito. Sobe ao ar carregando arsênio e metais pesados, os quais, soprados pelo vento, despejam-se sobre as áreas vizinhas.

Repetindo, caro leitor, para que não fiquem dúvidas: ao utilizar água dos tanques da área de lavra (tanques de DAM) e das barragens de rejeito para aspersão nas estradas, com vistas a conter poeira, a mineradora pratica uma agressão ambiental, porque a água de DAM tem que circular em circuito fechado. Ao aspergi-la nas estradas, a poeira levantada pelo trânsito de máquinas e caminhões levará consigo metais pesados, arsênio e cianeto (oriundo da água da barragem), espalhando os elementos tóxicos na poeira que sai da mina, contaminando o ar que você respira.

Vida, sobrevivência e morte estão profundamente afetadas pela exploração mineral que, desde 1987, tem impactado a comunidade com efeitos nocivos de agentes químicos e destruição ambiental, por vezes irreversíveis. A mineradora Kinross não pode continuar negando legitimidade às preocupações da população de Paracatu quanto aos efeitos deletérios de suas práticas ambientais.

Em vários países, especialmente onde se encontram as matrizes de mineradoras transnacionais, inúmeros programas e projetos que prevêem soluções práticas e economicamente viáveis têm sido implementados, na expectativa de diminuir as incertezas e os riscos de seus empreendimentos. Os riscos estão no cotidiano das pessoas e, por isso, todos os envolvidos têm legitimidade para definir e propor soluções para os problemas que os afetam. A propaganda hipócrita e enganosa, que trata a população paracatuense como tupiniquins ignorantes, põe em relevo o interesse sórdido de continuar jogando a poeira para baixo do tapete, ao invés de reconhecer nela um interlocutor legítimo para um processo de gestão e enfrentamento do desastre ambiental em Paracatu.

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 450, de janeiro de 2014, pág. 2.

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