Blog do Professor Márcio

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domingo, 24 de março de 2013

O Garimpo em Paracatu: Uma história que precisa ser contada - Capítulo X


Após 2002, o conflito entre a RPM/Kinross e os garimpeiros perdeu os últimos resquícios de visibilidade; até mesmo as páginas dos jornais que tratam de questões policiais ou os noticiários policiais de rádio e TV deixaram de veicular notícia dos conflitos.
O documentário Ouro de Sangue, realizado em 2008, mostra, sem deixar dúvida, através de depoimentos de pequenos proprietários do entorno da mina, que a entrada de garimpeiros na área da barragem e em outros pontos próximos à mina Morro do Ouro continuou, assim como a repressão continuou fazendo suas vítimas.
Este “cerco” somente seria rompido dez anos depois, quando o autor desta história publicou um artigo intitulado “Um negro no regime da nova escravatura”, a respeito da prisão de garimpeiros, pelos seguranças da Kinross. A mídia local não havia noticiado essas prisões, mas o referido artigo, estampado na 1.a página do jornal Noroeste News (ed. janeiro/2012), denunciou o fato e protestou contra a violação dos direitos dos quilombolas de viverem conforme suas tradições, obtendo o sustento em áreas de seus antepassados.
De acordo com o que este autor apurou, na noite de 27 para 28 de dezembro de 2011, cerca de 30 garimpeiros faiscaram na barragem de rejeito. Próximo do amanhecer, alguns garimpeiros estavam retornando, já nas imediações do quilombo São Domingos, quando foram surpreendidos pelos vigilantes da mineradora. Na ocasião foram presos Robson Ferreira da Silva, residente no quilombo São Domingos e que aparece em entrevista no filme Ouro de Sangue, e Eris Ribeiro Pereira, o mesmo garimpeiro que recebeu um tiro no pé em 2000. Enquanto isso, os outros que ainda estavam na barragem foram atacados a tiros por vigilantes e policiais, tendo um deles rolado do barranco e caído na lama, sendo dado como morto. Entretanto, mesmo ferido, esse garimpeiro conseguiu se arrastar pela lama e chegar, horas mais tarde, à sua casa. Os dois presos foram algemados e, em seguida, Robson foi espancado por policiais.
Desde o início dos conflitos aos dias atuais, envolvendo a RPM e os garimpeiros, apareceram inúmeras denúncias de espancamentos de garimpeiros presos, demonstrando não apenas que os aparelhos repressivos do Estado continuam a utilizar a tortura e outros métodos condenáveis no trato aos cidadãos, como também o grau de envolvimento da Polícia Militar com a defesa dos interesses da RPM/Kinross.
O artigo acima citado sobre a prisão de garimpeiros estimulou a produção de uma reportagem sobre o caso pelo jornal O Movimento (Ed. 413, jan. 2012, p. 5), sob o título “Negro pega 14 dias de cadeia por faiscar na área da Kinross”. A mineradora respondeu, na reportagem, que “Nos últimos meses, sofreu invasões em sua propriedade (...) por grupos armados que, em algumas ocasiões, também portavam explosivos e detonadores, artefatos usados durante a noite” e que, em um destes eventos, o carro da segurança patrimonial da Kinross foi alvejado.
A campanha difamatória, porém, não se intimida com o ridículo. Uma matéria jornalística publicada em julho de 2012 com o título “PM encontra dinamites no Santana” (O Movimento, Ed. 424, 16-31 jul., 2012, p. 15), noticiou a apreensão de 187 bananas de dinamite e certa quantidade de substância semelhante à cocaína, na casa de um traficante de drogas. A polícia afirmou suspeitar que o material poderia ser usado na explosão de caixas eletrônicos de bancos ou no garimpo clandestino.
Ora, qualquer garimpeiro, por menos instruído que seja, sabe que não tem sentido utilizar explosivos para detonar a lama da barragem de rejeito ou as areias das praias do Córrego Rico!
Portanto, o absurdo de apontar o uso de explosivo no garimpo em Paracatu chega às raias da estupidez, mas ao associar tráfico de drogas e assalto a bancos com a prática garimpeira, a polícia apenas usa um recurso mesquinho para denegrir os trabalhadores do garimpo.
Tomando-se por base as informações acima transcritas e em se acreditando na versão da Kinross, o conflito socioambiental que envolve a mineradora e as comunidades pobres do entorno da mina, embora abafado e sufocado, continua vivo – mais que isto, é uma guerra aberta, silenciada, mas interminável.
Estamos chegando ao final, caro leitor. Mas, esta sequência de artigos, onde pela primeira vez a imprensa de Paracatu ofereceu espaço para a exposição, sem censura, do conflito socioambiental aqui tratado não poderia finalizar sem responder a uma questão fundamental: - A história poderia ter sido diferente, sem uso da violência por parte da mineradora?
A literatura científica estrangeira fornece elementos que provam ser possível conciliar ogarimpo tradicional com a proteção social e ambiental, possibilitando assim que a justiça ambiental possa ser alcançada. Entre inúmeros exemplos, vamos citar o caso de uma “joint-venture” entre o governo do Zimbabwe e pequenos mineradores da região de Shamva, que criaram com sucesso um Centro de Processamento, o qual oferece serviços de processamento de minério a cerca de 200 garimpeiros; além disso, oferece serviços de perfuração, detonação, transporte de minério e apoio técnico de planejamento de lavra, segurança nas minas e controle de poluição.
Outro exemplo é o projeto de expansão da Anglo Gold, no Mali: diante de ameaças de garimpeiros, a empresa criou um projeto que oferece assistência técnica e recursos para a mineração artesanal, bem como alternativas de geração de renda, como a produção agrícola, fabricação de jóias, corantes e sabonetes.
Na América do Sul, temos o exemplo do Projeto Las Cristinas de apoio à comunidade garimpeira, da mineradora americana Placer Dome, na Venezuela. O projeto foi criado após a invasão de garimpeiros em áreas da empresa, que acabou reconhecendo a sua importância socioeconômica, levando-a a desenvolver com eles uma parceria de assistência técnica, incluindo o desenvolvimento de uma mina semi-mecanizada ambientalmente correta.
Os exemplos acima citados, baseados em valores de justiça ambiental, deixam claro que, quando a RPM e sua sucessora Kinross optaram pela repressão, isto não ocorreu por ausência de alternativas, mas por uma decisão com base em valores. Os valores de quem detém o ouro – valores monetários – têm se sobreposto, mas não poderiam se sobrepor, às classes de valor das populações atingidas pela faina de obtê-lo. Pesassem aqui os valores da justiça ambiental, a RPM/Kinross poderia sim ter realizado um trabalho de parceria com as comunidades atingidas pelo seu empreendimento.
Para todas as comunidades atingidas em Paracatu – garimpeiros, quilombolas, bairros vizinhos da mina e pequenos proprietários de terra – há o entendimento de que existe um direito prévio sobre o território e seus recursos, que não pode ser esbulhado com base no Código de Mineração. Elas vêem, estarrecidas, mais que a privação do acesso aos recursos, mas também o comprometimento dos sistemas naturais disponíveis para as gerações futuras, após a exaustão da mina.

O Garimpo em Paracatu Uma história que precisa ser contada - Capítulo IX


Embora a Rio Paracatu Mineração tenha contratado a empresa Pires para reprimir o garimpo, a dramática situação em que viviam os garimpeiros os impelia para a barragem de rejeito. Em maio de 2002, uma reportagem do jornal O Movimento com o título “RPM sofre 16 invasões só em abril” informava que as invasões contaram com a participação de 290 homens. O texto reproduz o discurso da empresa afirmando que somente um dos vigilantes da RPM tem arma de fogo e que os demais usam somente cães, equipamentos de segurança e balas de borracha na tentativa de evitar o “vandalismo dos marginais”; além disso, a reportagem dá voz ao gerente administrativo da empresa para afirmar que um dos fatores que motivam a RPM a impedir a ação dos invasores é o problema social, pois assim ela evita o aumento da criminalidade em Paracatu; finalmente, a reportagem sugere que essas pessoas (não diz quantas entre as 290) estariam ligadas a uma quadrilha de Itabira.
Uma descrição bastante esclarecedora do que seria a “quadrilha de Itabira” é encontrada no relatório antropológico de Scott e outros (já citado), que se refere a ela como um grupo de garimpeiros vindos de Itabira, que dominava uma tecnologia de garimpo chamada borrachões. No canal de rejeitos, esse grupo estendia os borrachões que retinham o ouro, deste nada sobrando para os demais garimpeiros. Assim “A grande maioria dos garimpeiros, por não terem conseguido se inserir nessa estrutura, percebiam a turma de Itabira como uma quadrilha da qual queriam cada vez mais se diferenciarem. No caso desses últimos, a percepção que tinham dos garimpeiros vindos de Itabira era de que, além de forasteiros, eles impediam que outros trabalhassem. Coisa que nunca teria acontecido nos momentos em que só pessoas de Paracatu garimpavam”. Portanto, a expressão “quadrilha de Itabira” nada tinha a ver com bandidos, conforme queria a mineradora.
As centenas de garimpeiros violentados ou presos nunca tiveram voz, rostos ou nomes no noticiário. Foram tratados como não-pessoas. Mas tiveram rótulos: invasores, criminosos, bandidos, quadrilheiros. As invasões que ainda aconteciam de modo intenso, mesmo depois de a RPM contratar a mais sofisticada empresa de segurança patrimonial do País, provocou uma mudança de sua estratégia de comunicação social. Se até maio de 2002, vez ou outra, a imprensa noticiava invasões, sempre apresentando a versão da mineradora, de agora em diante a estratégia seria impedir que fosse divulgada uma nota sequer, no noticiário escrito ou falado, sobre as invasões e a repressão.
De um lado, a imagem de vítima diante da ação de criminosos já estava consolidada e era franco o apoio que a RPM recebia dos órgãos do Estado – a polícia, o judiciário, a administração pública de modo geral – e da classe dirigente da sociedade, com todas as suas instituições.
De outro lado, percebeu-se que os garimpeiros, para a grande maioria da população, nunca perderam essa espécie de auréola misteriosa que os liga ao heroísmo e à façanha da construção da “Vila de Paracatu do Príncipe”, desde o passado remoto aos dias de hoje ligados à história da cidade, seu esplendor e sua miséria. A resistência daqueles garimpeiros desvalidos frente à opulência da grande empresa transnacional, sua coragem diante das ameaças e da violência, reforçava no imaginário popular a figura desses “robin hoods” contra o poder do grande capital.
A estratégia agora era impor o silêncio sobre o conflito com os garimpeiros e promover outro noticiário, para criar a imagem de outro herói: a empresa parceira, solidária e defensora dos interesses coletivos, que através de pequenos agrados mostrava estar disposta a compartilhar a fabulosa riqueza extraída.
Realizar tal empreitada, diante da repressão, da pressão e do poder hegemônico da RPM, não foi difícil, já que ela contou com os apoios necessários. Um passo importante foi ocupar o noticiário da imprensa local, sem dúvida através de matérias pagas, para veicular cada uma das pequenas ações da mineradora que pudessem ajudar a construir uma imagem sedutora: pequenas doações, visitas de alunos, concursos de redação, festas e churrascos na empresa, viagens de funcionários, compra de equipamentos, premiações da empresa, recordes de produção, planos de expansão, visitas de autoridades, apoios recebidos... e até mesmo jogos de futebol (simples peladas) dos funcionários da mineradora.
As filas de pedintes bem comportados ficou imensa, conforme se pode perceber através da propaganda divulgada na mídia local, com relatos de pequenas doações a comunidades de bairro, igrejas, associações etc. Enfim, a estratégia para construir a imagem que ainda prevalece na cidade foi impedir (até onde se pode) a circulação de notícias de conteúdo negativo e fazer circular (e celebrar) toda e qualquer notícia que reforce a imagem de uma empresa genuinamente paracatuense, guardiã dos valores da sociedade.
A partir daí, quase dez anos se passaram sem que a midia local noticiasse qualquer fato ocorrido em relação aos garimpeiros de Paracatu. Os conflitos teriam acabado ou impôs-se a lei do silêncio, uma censura em plena vigência da nova Constituição democrática? É o que veremos a seguir. Esteja conosco, caro leitor, no último capítulo desta história.

O Garimpo em Paracatu Uma história que precisa ser contada - Capítulo VIII


Logo após o assassinato de mais um garimpeiro pelos seus seguranças – Sandro Monteiro dos Santos –, a RPM promoveu em sua sede um debate sobre o garimpo clandestino. Essa articulação envolveu no debate as seguintes autoridades: o diretor do DNPM em Minas Gerais, Edward Álvares de Campos Abreu; o superintendente de recursos minerais da Secretaria Estadual de Minas e Energia, José Fernando Coura; o presidente da Confederação dos Trabalhadores do Setor Mineral, Lourival Araújo Andrade; o prefeito Almir Paraca; o presidente da Câmara, Antônio José Machado Rocha; o promotor de justiça, Paulo Campos Chaves; o delegado regional da Polícia Militar em Unaí, tenente-coronel José Carlos; o comandante da PM em Paracatu, capitão Luiz Sávio; o secretário municipal de Meio Ambiente, Antônio Eustáquio Vieira (Tonhão, do Movimento Verde) e o secretário da Saúde, Antônio Alves. 
Certamente, tão seleto grupo, apontado a dedo, de pessoas que nas suas respectivas funções já vinham dando respaldo às ações da RPM em diferentes instâncias do poder, a conclusão óbvia foi que a prática do garimpo clandestino não solucionaria o problema do desemprego e a sua continuidade com o uso indiscriminado de mercúrio poderia ocasionar sérios danos à economia e ao meio ambiente do Noroeste de Minas.
Entretanto, as sábias conclusões da elite governante não iria saciar a fome das famílias dos garimpeiros. A edição de O Movimento, em outubro de 2000, informou que, no dia 13 daquele mês, a PM foi acionada pela mineradora e deparou-se com aproximadamente 70 pessoas praticando garimpo ilegal na barragem de rejeito, tendo prendido quatro delas. Os outros garimpeiros, na versão da polícia, teriam atacado os policiais e os seguranças da RPM, utilizando pedras e paus, e ameaçado os militares.
As palavras do gerente geral da RPM, proferidas em palestra realizada em 2001 dentro da companhia, são indicativas da disposição de continuar tratando o impacto social negativo provocado pela mineradora como caso de polícia. Disse ele que: “Não é mais aquele garimpeirozinho que vinha aqui pra conquistar o sustentozinho e tentar tirar umas graminhas de ouro nosso aqui, pra comprar comida. (...) Os caras estão entrando aqui... armados. Está concentrado em criminosos. Olha... se nós falarmos hoje que vamos deixar o pessoal vir aqui estourar isso, com uma semana a invasão em Paracatu é monstruosa. O nosso grande objetivo, a nossa grande meta é desmotivar o pessoal de vir aqui.
Observe-se que o discurso do gerente geral reconhecia que antes era o “garimpeirozinho” que buscava ouro para comprar comida. Isto contradiz o que a empresa proclamava – que os invasores não eram garimpeiros, mas quadrilhas organizadas para roubar –, e reconhece o que de fato representava o garimpeiro: uma pessoa pobre que lutava pelo sustento, simplesmente para comprar comida.
Atente-se também para a afirmação: “estão entrando aqui (pausa) armados”. Sempre que provocou suas vítimas, a empresa justificava que seus seguranças foram recebidos por paus, pedras e até facões, mas nunca apontou o nome de um segurança que tenha sido atingido por arma de fogo.
Outro aspecto da fala do gerente geral é apresentar a empresa como defensora da cidade de Paracatu, impedindo que ela seja vítima de uma “invasão monstruosa” por parte de criminosos. Esse tipo de propaganda, que cria e manipula medos coletivos, é uma tática sempre presente nos jogos de poder, para legitimar a brutalidade da repressão.
Em 2001, a RPM, para enfrentar os garimpeiros de uma forma mais eficaz, tomou duas decisões: contratar um estudo antropológico para melhor conhecer os garimpeiros e contratar uma empresa de segurança para reprimi-los.
O estudo antropológico foi conduzido pela FAGES – Família, Gênero e Sexualidade, ligada à Universidade Federal de Pernambuco, que produziu o relatório denominado “Garimpeiros, Comunidade e Rio Paracatu Mineração: um estudo antropológico”. Essa pesquisa foi realizada entre março e julho de 2001, justificada para encontrar formas de amenizar o conflito entre garimpeiros e empresa e melhorar as relações desta com a comunidade. A equipe que realizou a pesquisa garantiu, no contrato com a empresa, o direito de publicar um documento de retorno de informações para a comunidade, que foi dado a público somente no ano de 2005.
O relatório desmistifica a propaganda da RPM, mostrando a realidade do garimpo, simplesmente o último recurso de pessoas trabalhadoras na luta pela sobrevivência: “Os garimpeiros de Paracatu continuam sendo homens trabalhadores pobres, de origem rural, expulsos de áreas tradicionais da economia por processos de capitalização do campo e da mineração, apertados por um processo de diminuição de oportunidades de trabalho. (...) Com pouca instrução (...) eles ou os seus familiares trabalhavam no garimpo artesanal... (...) As oportunidades para pequenas melhoras nas condições de vida que alguns tiveram neste período foram rapidamente dissipadas com a exclusão deles do Morro do Ouro, em 1988, quando a RPM recebeu o direito exclusivo da lavra, e com o fechamento dos garimpos independentes nas praias dos córregos, devido à aplicação da nova legislação ambiental de 1989”.
Com relação à contratação de uma empresa de segurança, a matéria divulgada em O Movimento (Ed. 218, junho 2001, pág.3) anunciou que, para reprimir os garimpeiros, a RPM contratou a empresa Pires, a mais sofisticada e especializada em segurança patrimonial. O gerente geral da RPM explicou que o novo aparato seria integrado por vigilantes bem armados, além de cães amestrados. O contrato teria ocorrido após visita de agentes do Departamento de Operações Especiais (DEOESP) da Secretaria de Segurança Pública de MG a Paracatu, “oportunidade em que trocaram tiros com invasores”.
Essa expressão “troca de tiros”, quando vinda da polícia, é bastante suspeita, principalmente porque jamais ocorreu qualquer episódio que comprove porte de arma de fogo pelos garimpeiros de Paracatu. Enfim, o DEOESP, um órgão público de segurança do Estado de Minas Gerais, saiu de Belo Horizonte para ficar a serviço da RPM, uma empresa privada transnacional... e ainda atirou nos garimpeiros!  Dá para acreditar?
Sigamos ao próximo capítulo, caro leitor!

O Garimpo em Paracatu Uma história que precisa ser contada - Capítulo VII


Concluímos o capítulo anterior com uma pergunta: como reagiu a sociedade paracatuense diante da repressão aos garimpeiros por parte da mineradora RPM? A resposta é curta e incômoda: as reações variaram do alheamento à passividade e até mesmo à aprovação da violenta repressão. Muitos aceitaram a versão da empresa de que se tratava da defesa do patrimônio contra a invasão de bandidos armados; ninguém questionou o fato de que os “bandidos” eram invariavelmente negros, descendentes de escravos que se fixaram próximos ao Morro do Ouro, cujas práticas de sobrevivência incluíam a faiscação.
Longe deste Autor explicar a repressão pelas características da empresa. Fosse outra mineradora, a repressão também seria brutal, porque qualquer empresa aqui instalada sempre refletirá a sociedade em que ela se insere. A brutalidade da repressão é uma decorrência da natureza da própria sociedade brasileira e, especificamente, paracatuense. Esta cidade aparentemente pacata nasceu sob o signo da escravidão e suas sequelas marcaram o longo período de domínio dos coronéis: aqui a prepotência ainda é vista como direito legítimo do mais forte. Acrescente-se que os fatos narrados nesta história ocorreram logo após o final da ditadura militar, período em que o questionamento do abuso de poder era severamente punido, entendido como subversão dos valores da “sociedade cristã e democrática”.
Vasculhando os jornais de Paracatu do ano de 1998 não se vê uma única nota que se referisse ao conflito com os garimpeiros, que ainda prosseguia na área da barragem.  Mas, em fevereiro de 1999, como narrou o jornal O Movimento, um dos vereadores, Archanjo Mendes Santiago, resolveu levantar a voz na tribuna da Câmara, e sua fala repercutiu na imprensa, levando à tomada de posição dos vereadores. O vereador Archanjo condenou a prisão, dias antes, de alguns garimpeiros na área da barragem de rejeito da RPM, entre eles pessoas idosas, dizendo reconhecer o direito de propriedade da empresa, mas que as pessoas presas eram honestas e só recorriam à garimpagem proibida como último recurso de sobrevivência, cada vez mais difícil com a crise do desemprego. Segundo ele, a situação era tensa, porque nos bairros da periferia havia reuniões constantes para organizar os garimpeiros, que mais fortes poderiam buscar uma solução para o garimpo.
Em 2 de março de 2000, uma comissão de garimpeiros procurou o prefeito Almir Paraca para ajudar na soltura de companheiros presos e na liberação do garimpo na área de rejeitos, já que nada ali interessava à RPM, suas famílias passavam fome e não havia trabalho na cidade. A resposta do prefeito é que nada poderia fazer pelos presos, já que a questão estava entregue à Polícia e à Justiça, e quanto ao desemprego, isto era problema do governo federal. Após a entrevista com o prefeito, os garimpeiros saíram em passeata pela cidade.
A violência da repressão iria marcar mais um ponto no ano seguinte, quando na madrugada de 24 de março de 2000 um grupo de garimpeiros foi surpreendido na área de rejeitos pelos seguranças da mineradora. Na versão dos vigilantes, quando eles tentaram retirar os invasores do local, estes reagiram com pedaços de pau e facões, dando origem a um conflito generalizado, momento em que o vigilante João Antonio atingiu um dos garimpeiros com um tiro no tórax.  O garimpeiro Sandro Monteiro dos Santos, com apenas 22 anos, morreu logo ali.
Mais tarde, outro garimpeiro, Éris Ribeiro Pereira, deu entrada no Hospital Municipal com perfuração à bala no pé esquerdo. Éris, filho de Dona Nega, residente no bairro Lavrado II, vizinho à mina, era primo de Sandro, ambos nascidos em famílias negras tradicionalmente faiscadoras. O vigilante identificado pela morte de Sandro, João Antonio, em depoimento à Polícia Militar, contou que tudo começou porque ele e seus companheiros foram ameaçados pelos garimpeiros e, no meio da confusão, ouviu-se um disparo que foi respondido por ele com outro disparo “para o alto”. Mais tarde, revoltados com a morte do companheiro, centenas de garimpeiros realizaram uma passeata no centro da cidade e se concentraram na frente da Prefeitura. Depois, dirigiram-se a pé até a sede da RPM, sendo contidos pela Polícia Militar.
Embora seja louvável que a imprensa local tenha noticiado este assassinato, ela só apresentou a versão dos seguranças da RPM, isto é, a versão da empresa. Nenhum jornal concedeu voz aos atingidos pela violência. Além disso, os títulos das matérias enfatizaram o confronto entre garimpeiros e seguranças, omitindo o nome da mineradora, induzindo tratar-se de um problema entre estes, desqualificando o significado real profundo desse conflito social, ou socioambiental, entre dominados e dominantes.
Contudo, ressalte-se que nesta edição do jornal O Movimento (Ed. 195, março/2000, p. 1), pela primeira vez foram divulgados na imprensa os nomes dos garimpeiros atingidos em 27 de junho de 1998 – os irmãos Canela –, quase dois anos após a tragédia.
Foi também um momento de coragem e de indignação do Editor do jornal O Movimento, José Edmar Gomes, que na sua coluna escreveu: “(...) É, no mínimo, contraditório que as vítimas sejam da classe social que a mineradora queira alcançar com suas ações de cunho filantrópico. Os cidadãos desesperados que invadem a área da empresa em busca de alguns gramas de ouro para amenizar a miséria de suas vidas, certamente, veem naquele território um oásis onde imperam os bons modos, os bons salários e, sobretudo, sobras generosas do precioso metal. De outra forma, uma multinacional do Primeiro Mundo, que extrai quilos e quilos de ouro por dia, instalada em uma cidade brasileira com alto percentual de desempregados, sem dúvida, desperta um sentimento de inconformismo entre aqueles que, num passado recente, se valiam do aluvião do Morro do Ouro em suas necessidades mais agudas.”
A versão do episódio por parte dos garimpeiros só viria a público em 2008, através do filme documentário Ouro de Sangue, na voz de Éris Ribeiro Pereira, quando afirma que seu primo Sandro foi capturado e espancado pelos seguranças, que depois o mataram com um tiro nas costas. Éris conseguiu escapar, mas levou um tiro no pé no momento em que saltava o barranco. O segurança da RPM que matou Sandro foi julgado e condenado a um ano de prisão, em regime semiaberto.
Poder, Lei e Justiça: em qual deles você acredita, caro leitor? Continue conosco no próximo capítulo.