Blog do Professor Márcio

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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

PARA NÃO ESQUECER QUEM SOMOS

Um depoimento vibrante de Lavoisier Albernaz

Lavoisier é dessas pessoas que só se revelam no diálogo. Tem um jeito afável, cordial, aberto com os amigos, mas retraído à primeira vista. É como o portão de sua casa, cerrado, mas que se abre com um leve toque. Bastou tocar à sua porta para me sentir como é bom ser bem-vindo: Lavoisier recebeu-me de braços abertos, contou-me suas histórias, seus sonhos, mostrou-me a incrível diversidade de seus trabalhos. Ouvindo suas músicas, apreciando suas poesias declamadas na voz doce de Enila, examinando as pinturas que ele fez em parceria com Flávio Costa, passei horas muito agradáveis, enquanto ele discorria com paixão sobre a história e a cultura de Paracatu.
É um pouco disto que pretendo oferecer nesta entrevista, caro leitor. Revelar facetas de uma pessoa que não é apenas um dos maiores detentores de conhecimento sobre o patrimônio histórico-cultural de Paracatu, mas o intelectual cidadão que se colocou a serviço de nossa cidade.


Márcio José dos Santos – Em 8 de dezembro de 2011.

Márcio: Você foi uma das primeiras pessoas de Paracatu que se posicionaram a respeito da exploração do minério do Morro do Ouro por parte da transnacional RTZ. Na época, quais eram as suas preocupações em relação ao empreendimento?

Lavoisier: Medo, sentia várias sensações que realmente me preocupavam bastante, dentre elas, que os moradores não teriam mais a qualidade de vida de antes, uma vez que a mina, naquela época, já atingia o perímetro urbano. Depois, medo pela destruição do Morro: perda da sua influência climática no controle dos ventos; perda total de um documento concreto que influenciou nossa história e cultura, deixando marcas indeléveis do braço escravo, como os montes de cascalhos lavados pelos negros faisqueiros, a destruição dos mundéus que eram os tanques de aluvião, onde se armazenavam as águas pluviais para a mineração e que contribuíam para fortalecer o Córrego Rico; assim também os longos regos, conhecidos por trincheiras que os interligavam, todos foram abertos em rocha bruta, lajeados, muitos atingindo até a parte aluvionar e eluvionar dos filitos “boudinados”. A destruição das nascentes d’água, cavernas e refúgios de lobos e raposas. A destruição dos túneis históricos, certidões da mineração das primeiras bandeiras invasoras. Enfim, o pior de tudo, o mais criminoso de tudo isso foi a destruição da nascente-mestra e das nascentes adjacentes formadoras do Córrego Rico. Enfim, o medo maior era viver em um meio ambiente contaminado, sem esquecer o prejuízo histórico-cultural que certificou a conquista do Noroeste Mineiro.

Márcio: Quais os significados concreto e simbólico do filme documentário “Morro do Ouro Ambição e Agonia”?

Lavoisier: O concreto foram as certidões contidas no Morro, deixadas pelo braço escravo, verdadeiras documentações da época das bandeiras e que, graças a Deus, registramos no filme. Acresce-se o registro ambiental das nascentes, da fauna silvestre e da flora local do Morro, utilizada no tratamento fitoterápico, principalmente das pessoas humildes.

O simbólico foi o delineamento de uma identidade cultural: o Morro do Ouro influenciou a nossa literatura, poesia, contos, teatro, lendas, costumes etc. A perda do Morro do Ouro reflete-se em perda do turismo, qualidade de vida e em auto-estima, quando assistimos de pé toda nossa riqueza indo embora para o estrangeiro, para o nada, e a nossa cultura ficando órfã, pobre como a nossa história e o nosso povo.

Márcio: Qual a repercussão do filme no contexto daquela época?

Lavoisier: Foi de alerta, foi de emoção pura. Em todos os jornais de Paracatu, Belo Horizonte e Brasília o documentário Morro do Ouro Ambição e Agonia se tornou manchete por muito tempo. Repercutiu na identidade negra; elementos da raça negra, como o Seu Leno Meireles e Seu José Bambal, tiveram grande orgulho e prazer em participar do documentário para contar a origem e a história dos negros paracatuenses. Não houve nenhum preconceito, nem indisposição durante as filmagens por parte deles, todos nós sofremos e passamos pelas mesmas dificuldades, como cansaço, fome, sede e calor intenso para realizar as filmagens. Outra coisa importante é que foi um filme inteiramente idealizado e produzido por mim e meus amigos atores e cinegrafistas de Paracatu. Exceto pela narração do filme, que ficou a cargo de Sérgio Chapelin, por minha escolha, e a montagem realizada nos estúdios da UnB, Morro do Ouro Ambição e Agonia foi um marco cultural genuinamente paracatuense.

Márcio: No seu entender, quais foram as leituras que aquele filme proporcionou aos vários segmentos da população de Paracatu?

Lavoisier: De revolta, de medo da perda cultural, ambiental e histórica. Foi comentário nas rodas por um ano ou mais. O filme também despertou muita saudade nas pessoas, principalmente aquelas que na infância ou na juventude participaram de excursões escolares, passeios e aventuras de caça (o que era permitido naquela época); sobretudo, a forte saudade dos banhos na Gruta de Vênus e no Poço do Azulão.
Muitos jovens negros que participaram do filme aprenderam a história de seus ancestrais, sua chegada aqui e a sua importância na formação da nossa gente, da edificação da nossa cidade, da nossa economia e do patrimônio histórico-cultural.

Márcio: Quais foram os apoios e/ou boicotes que aquele filme recebeu, para produção e para divulgação?

Lavoisier: Muitas vezes tive que enfrentar a polícia da empresa para a realização de algumas sequências do roteiro do filme, proibindo nossa entrada dentro do Morro do Ouro, ao que respondi com coragem, atitude, porque sou neto de quem, na época, era o proprietário da área.

Quanto a apoio financeiro, recebi do Prefeito de Paracatu, Arquimedes Borges, o patrocínio de um mil e quinhentos cruzados novos, quem também nos forneceu ônibus e motorista, exceto o combustível, para conduzir a equipe fora da cidade. O Sr. Elizeu Araújo Ferreira e sua esposa Zilda, proprietários da Fazenda Machadinho, forneceram alimentação e transporte aos locais difíceis (trator e carreta) para toda a equipe. A Copasa nos deu ajuda para produzir efeito de chuva artificial. A FUNAI, através da Rosângela Carvalho, nos enviou um índio (Araribu Mirim) da tribo Urubu-Kaapor, duas cobras e um lagarto. Todos os demais custos foram assumidos por mim e pessoas amigas. Quero ressaltar que quase todos os atores, felizes em participar, custearam suas próprias indumentárias. Enfim, e principalmente, tive a ajuda de muitas pessoas de Paracatu, e seria quase impossível nomear a todos. Na divulgação tive ajuda do Jóquei Clube Paracatuense, da TVP, das rádios e dos jornais de Paracatu e, em especial, da Graça Caetano Jalles, que contribuiu com a decoração externa do Mercado de Paracatu e comandou a noite da “avant-première”.

Márcio: Estamos no final do ano 2011, já passados quase 20 anos do lançamento do seu filme. Neste momento, como você avalia a exploração mineral no extinto Morro do Ouro e seu impacto na cidade?

Lavoisier: Foi pior do que alertei no filme. Penso que a empresa precisa repor ao povo o que lhe foi e ainda continua sendo tirado. É preciso resgatar bem a nossa cultura, apoiar a revitalização dos bens imateriais do município como Caretada, Tapuiada e Congada, através de coordenadores que conheçam bastante o assunto; apoiar a restauração de monumentos históricos, como a Igreja de Santo Antonio, seu adro e o largo; de ruas e becos, de igrejas do meio rural, museus, bandas de música etc. É preciso apoiar o teatro, base da nossa cultura, construindo uma casa de espetáculo; apoiar a produção cinematográfica de extensão nacional e a literatura locais. Isto tudo pertence ao povo, é um fazer globalizado, tal qual eram o Morro do Ouro e o Córrego Rico. Para mim, não tem sentido falar em revitalização do Córrego Rico desrespeitando suas margens: o córrego não existe mais, foi destruído pela mineradora; o que existe agora é a continuidade do seu afluente Córrego do Espalha e os esgotos que são nele lançados, causando mal cheiro.
Jovens paracatuenses se banhavam no poço da Gruta de Vênus, no  Morro do Ouro.
Márcio: Se fosse produzir o filme agora, o que você mudaria ou acrescentaria?

Lavoisier: Se fosse produzi-lo agora ficaria de fora o mais precioso de tudo: as marcas indeléveis do braço escravo no solo paracatuense, toda uma vida ambiental destruída, o poético, o cultural e o turístico não teriam vez atualmente; acrescentaria o pânico, a revolta de grande parte de um povo que tem medo de um futuro sem qualidade de vida.

Márcio: Você é um pensador, um artista com produção diversificada, cujo valor é reconhecido nos meios intelectuais por sua qualidade e fina sensibilidade; seu conhecimento da história e das lendas locais é um patrimônio vivo da cidade; afora isto, como cidadão, são relevantes os serviços que você prestou na defesa do patrimônio histórico e cultural de Paracatu. Qual o reconhecimento que lhe é dado pelos agentes públicos, especificamente de Paracatu, através de apoio para a divulgação, preservação e continuidade de sua obra intelectual?

Lavoisier: Faz-me rir, porque até o presente momento é quase nenhum. Às vezes chego a acreditar que “santo de casa não faz milagre”. Amo minha terra, mas tenho sido muito injustiçado por aqui. A questão política é terrível, onde o partidarismo absoluto não olha a qualidade das pessoas, mas sim o compromisso com as coligações, o que muitas vezes faz com que “quebrem a cara” ao indicarem pessoas sem competência específica para determinados cargos.

Fui mais agraciado com reconhecimento fora de Paracatu. A maior honraria a mim prestada pode ser vista no Memorial JK, em Brasília, onde se encontra uma placa com meu poema “MINISTORINHA”, do meu livro de poesias “Viagem Absoluta”, localizada na entrada oficial de autoridades. Devo isto aos amigos Dr. Afonso Arinos de Mello Franco e Dr. Álvaro Álvares da Silva Campos, ambos falecidos, e ao Cel. Afonso Heliodoro dos Santos.

Foi graças à minha luta que teve início o processo de tombamento do Núcleo Histórico de Paracatu, com a instalação de um posto regional do IPHAN na cidade. Idealizei, fui um dos fundadores e o primeiro diretor-presidente da Fundação Municipal Casa de Cultura de Paracatu, que hoje é a sala de visitas e a maior divulgadora da cultura local. Idealizei todos os museus de Paracatu, alguns ainda não realizados, como a Casa do Tropeiro de Minas Gerais e o Museu da Cultura Popular, e a construção de um Parque Ecológico nos fundos da Chácara dos Padres, em cujo terreno foi criada uma Área de Preservação Permanente. Com alguns amigos, revitalizei a Tapuiada, em 1985, e fiz o primeiro grande Teatro-Sacro de Paracatu, com a encenação do primeiro Presépio Vivo do Brasil, no Largo do Rosário.

Em 1987, ao lado de Walderez Porto Gonçalves, que na época era bibliotecária da EE. Antonio Carlos, fui mentor da criação da Academia de Letras do Noroeste de Minas, a qual foi concretizada na administração do Prefeito Manuel Borges. Fui vencedor de quatro prêmios no XIII Festival Regional da MPB em Paracatu, no ano de 1988. Fiz, com o Grupo Teatral Pedro Salazar, a encenação da peça A MORATÓRIA, considerada a melhor peça da dramaturgia brasileira, trabalhando com atores paracatuenses de destaque, como Adelina Botelho, Ruth Brochado e Antonio Eustáquio Vieira. Assumi a direção daquele espetáculo de época, que retratou o Brasil durante a Revolução de 30 e as crises do Café e do Zebu. Com minhas alunas do Magistério, em trabalho extra-classe, revitalizamos a Mesa de Paracatu, que ocorreu no antigo prédio do Jóquei Clube, onde hoje se situa a Câmara Municipal; isto se deu na época do Prefeito Diogo Soares Rodrigues, contando com a presença do Ministro da Cultura Dr. Aluizio Pimenta.

Por falar na Câmara Municipal, pouca gente sabe que aquele prédio iria ser vendido para um investidor de Brasília, para demolição; sabendo disso, interferi junto ao Município para que este o adquirisse, evitando a destruição de mais um monumento histórico da cidade. Convidei meu ex-aluno, então vereador, Aroldo Dayrell, a elaborar um projeto de aquisição e restauração do prédio e transformá-lo na sede da Câmara, que ficou livre dos aluguéis. Hoje o prédio é um cartão postal da cidade e muito bem a representa.

É importante lembrar que fui um dos membros fundadores do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico de Paracatu – CONFAP. Afora isto, tenho uma militância de cerca de 40 anos em prol da preservação da Cultura e da História de Paracatu.
Tenho vários trabalhos elaborados, os quais aguardam apoio financeiro para serem levados ao público. Concluí uma enciclopédia de 12 volumes, denominada “PARA NÃO ESQUECER QUEM SOMOS”, a qual trata do resgate e do registro de toda a cultura popular do município paracatuense. Tenho um livro sobre a história de Paracatu, denominado “PARACATU ATENAS MINEIRA”, um livro sobre o filme e a história do Morro do Ouro e do Córrego Rico e o projeto de uma segunda edição do livro “VIAGEM ABSOLUTA”, o qual inclui uma edição sonora com participação de Paulo Autran, Bete Mendes e Frei Pedro Caxito. E minha maior ousadia cultural está na realização do filme “MAIS FORTE QUE A LENDA”, baseado no conto premiado “A Esteireira”, do livro “Pelo Sertão”, de Afonso Arinos. Trata-se de um longa-metragem em parceria com um dos grandes roteiristas brasileiros – Carlos Alberto Ratton –, mas sofro barreiras para sua realização, pois necessitaria revitalizar o adro da Igreja de Santo Antonio, com o retorno de suas escadarias, cruzeiro e largo, incluindo a retirada de elementos de interferência criminosa no aspecto estético Barroco-Colonial, dentro e fora da igreja.

Todos esses projetos estão prontos, mas, para se tornarem realidade, precisam de patrocinadores, não tenho recursos financeiros para produzi-los. Pena que a cultura não seja prioridade e sofra com os descasos, apesar de minha contribuição ter marcado com relevância o teatro, a literatura, o cinema, o folclore e o patrimônio histórico de Paracatu.

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