Blog do Professor Márcio

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terça-feira, 30 de julho de 2019

AMAZÔNIA SAQUEADA


Em plena era digital, falta sistema informatizado de fiscalização e notas fiscais ainda são preenchidas à caneta
Rio cercado por árvores, muitas derrubada, e com barrancos de terra no leito do rio, resultado do assoreamento provocado pela mineração
Área de garimpo ilegal em que Ibama desativou máquinas de mineração na Terra Indígena Munduruku, no Pará, em maio de 2018 (créditos: Vinícius Mendonça/Ibama, em licença CC BY-SA 2.0, via Flickr)
Uma investigação inédita para esmiuçar o funcionamento de uma das maiores empresas compradoras de ouro no maior polo da mineração ilegal no Brasil, a bacia do Tapajós, no sudoeste do Pará, resultou em um retrato do completo descontrole do país sobre essa cadeia econômica, responsável por prejuízos financeiros, sociais e ambientais de proporções devastadoras.
Coletadas durante três anos pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Polícia Federal (PF), uma série de provas do quanto é frágil a regulamentação e a execução do papel fiscalizador do Estado foram reunidas em duas ações propostas pelo MPF à Justiça Federal em Santarém em maio e julho deste ano.
Uma ação, na área criminal, foi ajuizada contra os responsáveis por um posto de compra de ouro da empresa Ourominas em Itaituba, acusados de formarem uma organização criminosa para fraudar documentação e, assim, “esquentar” (acobertar) a origem clandestina do ouro. Só entre 2015 e 2018, o grupo fraudou a compra de 610 quilos do minério, causando um prejuízo de R$ 70 milhões à União.
A outra ação, na área cível, foi proposta contra a Agência Nacional de Mineração (ANM), a União, o Banco Central, o posto de compra e a Ourominas. Nessa ação o MPF cita, pela primeira vez, trechos de um manual de atuação da instituição para o combate à mineração ilegal. O documento foi elaborado pela força-tarefa Amazônia do MPF, integrada por procuradores da República de todos os estados da região, que fizeram um diagnóstico aprofundado sobre os problemas, indicando soluções para a questão.
Procedimentos de controle arcaicos – Como ainda não contam com um sistema informatizado, os procedimentos atuais para o controle da compra, venda e transporte do ouro são um campo fértil para fraudes.
As notas fiscais são preenchidas manualmente, à caneta. O máximo de tecnologia exigido pela legislação para a confecção dos documentos da cadeia do ouro é a máquina de escrever e o papel-carbono. As notas fiscais em papel ficam estocadas com os compradores. Não há nota fiscal eletrônica, não há acesso automático às informações pelo poder público, e muito menos cruzamento de dados.
A atividade garimpeira sequer é definida de modo claro na legislação, permitindo que a atuação de uma empresa mineradora de porte industrial tenha seus impactos considerados equivalentes à atividade de um garimpeiro artesanal.
Não há limites para a emissão de autorizações de exploração de lavra: uma mesma pessoa ou cooperativa pode ser detentora de quantas permissões de lavra conseguir registrar em seu nome.
Também não há controle sobre o uso das permissões de exploração, facilitando muito o “esquentamento” do ouro clandestino. As permissões continuam em vigor mesmo que as áreas não tenham sido exploradas, ou que seus detentores não apresentem relatórios de produção, ou que apresentem relatórios zerados ou incompatíveis com a quantidade de minério indicada em notas fiscais.
A legislação prevê a criação de um sistema de certificação de reservas e de recursos minerais. No entanto, o sistema ainda não está criado. Houve consulta pública no final de 2018, e a avaliação das propostas está a cargo da ANM.
O sistema deveria servir para subsidiar a formulação e implementação da política nacional para as atividades de mineração, fortalecer a gestão dos direitos e títulos minerários, consolidar as informações relativas ao inventário mineral brasileiro, definir e disciplinar os conceitos técnicos aplicáveis ao setor mineral, entre outras funções.
Riquezas saqueadas – A Amazônia brasileira já tem mais de 450 áreas ou pontos de mineração ilegal, registra o relatório Amazônia Saqueada, publicado no final do ano passado por pesquisadores da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg).
Só na bacia do Tapajós são comercializadas ilegalmente 30 toneladas de ouro por ano – R$ 4,5 bilhões em recursos não declarados –, seis vezes mais que o comércio legal na mesma região, segundo informações apresentadas pela ANM em audiência pública realizada em abril deste ano na Câmara dos Deputados.
Envenenamento em massa – De acordo com laudo elaborado pela PF e pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), nas águas do Tapajós a mineração ilegal de ouro despeja, a cada 11 anos, o equivalente à barragem da Samarco que rompeu em Mariana (MG) em 2015, destruindo a calha do rio Doce, entre Minas Gerais e Espírito Santo.
Há estimativas de que até 221 toneladas de mercúrio são liberadas por ano para o meio ambiente pela mineração ilegal no Brasil, indicam estudos preliminares apresentados em 2018 na primeira reunião do Grupo de Trabalho Permanente da Convenção de Minamata sobre Mércurio (GTP-Minamata), realizada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).
A Convenção de Minamata é um acordo global para controlar o uso do mercúrio, tendo em vista a letalidade da substância para a saúde humana e para o meio ambiente. Em agosto de 2018 foi publicado decreto presidencial que concluiu a internalização jurídica, pelo Brasil, da Convenção. Com a promulgação do decreto, as determinações da Convenção de Minamata tornaram-se compromissos nacionais oficiais.
O mercúrio envenena principalmente quem trabalha em áreas de mineração ou vive perto delas, como povos indígenas e comunidades ribeirinhas, além da população consumidora do pescado. No ser humano, a substância afeta o sistema nervoso central, causando problemas de ordem cognitiva e motora, perda de visão, doença cardíaca e outras deficiências.
Urgência sanitária – Na região do Tapajós, já foram detectadas alterações cardiológicas e neurológicas em pessoas que têm alto nível de metilmercúrio, relatou na audiência da Câmara dos Deputados o neurocirurgião Erick Jennings Simões, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.
Ele destacou que não há cura para esses problemas originados pela contaminação por mercúrio, e que no Tapajós as pesquisas indicaram que a contaminação tem afetado até mesmo moradores de áreas urbanas distantes da região de garimpo, como os moradores de Santarém, um dos municípios mais populosos do Pará, com cerca de 300 mil habitantes.
Uma das lideranças indígenas presentes na audiência pública, Alessandra Korap, da etnia Munduruku, denunciou que as crianças estão reclamando de dores e que as mulheres grávidas estão sofrendo abortos espontâneos, algo que não acontecia nas aldeias. Segundo o neurocirurgião Erick Jennings, o metilmercúrio consegue atravessar a placenta, podendo causar danos irreversíveis ao feto.
Para pesquisadores do Ministério da Saúde e da Ufopa ouvidos por deputados federais, é “urgência sanitária” o monitoramento clínico e laboratorial das populações submetidas à contaminação de mercúrio na bacia do Tapajós.
Invasão originou ação – A mineração ilegal é um dos principais vetores de invasões a áreas protegidas, como Terras Indígenas e Unidades de Conservação (UCs). A investigação que deu origem às ações ajuizadas pelo MPF em Santarém, por exemplo, começou a partir das operações Dakji I e II, realizadas em 2016 para combater garimpagem ilegal de ouro na zona de amortecimento da Terra Indígena Zo’é, no município de Óbidos. A zona de amortecimento é uma área de proteção integral.
As operações deram origem a três inquéritos policiais. Em um deles, investigados que atuavam na área conhecida como garimpo Pirarara, na zona de amortecimento da Terra Indígena, relataram que vendiam o minério à Ourominas sem a necessidade de apresentar qualquer tipo de comprovante de legalidade da origem do produto.
Interditados nas operações, os garimpos ilegais foram sucessivamente reocupados por novas levas de garimpeiros, agora em 2019 pela terceira vez. “Este fato denota a dificuldade em se combater a extração ilegal de ouro tão somente a partir do exercício do poder de polícia ambiental in loco nos ‘garimpos’ ilegais. Esta ação civil pública busca promover um reenquadramento da problemática, impelindo os entes públicos a também exercerem sua atribuição regulatória e fiscalizatória sobre elos da cadeia que até então operam à margem do olhar estatal: os compradores de ouro ilegal”, explica o MPF na ação cível.
A ação cível foi assinada pelos procuradores da República Camões Boaventura, Paulo de Tarso Moreira de Oliveira, Ana Carolina Haliuc Bragança, Patrícia Daros Xavier e pelo assessor jurídico do MPF Rodrigo Magalhães de Oliveira. A denúncia criminal foi assinada pelos mesmos membros do MPF autores da ação cível, além dos procuradores da República Hugo Elias Silva Charchar e Antônio Augusto Teixeira Diniz.
Impactos em série – Além dos prejuízos financeiros bilionários para o país, dos graves riscos à saúde da população, e das invasões a áreas protegidas, a mineração ilegal estimula uma série de outros problemas socioambientais: desmatamento ilegal – que já eliminou 20% da cobertura vegetal original da Floresta Amazônica –, assoreamento de rios, grilagem (usurpação de terras públicas), conflitos agrários, trabalho insalubre, trabalho escravo, tráfico de pessoas e exploração sexual, doenças como malária, leishmaniose, e as sexualmente transmissíveis (DSTs), entre outras consequências.
Na prática – Nas próximas semanas, o MPF vai publicar uma série de matérias para resumir como as várias fragilidades do sistema de controle da cadeia do ouro possibilitaram a atuação da organização criminosa denunciada pela instituição.
Também serão descritos os pedidos feitos pelo MPF à Justiça relativos às instituições públicas e às empresas processadas.
O conteúdo integral das ações, com todos os detalhes disponíveis, já pode ser acessado nos links abaixo.
Ação cível: processo nº 1003404-44.2019.4.01.3902 – 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)
Ação criminal: processo nº 0000244-28.2019.4.01.3902 – 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)

Fonte: Ministério Público Federal no Pará

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 30/07/2019
Ações do MPF no Pará apontam provas do completo descontrole da cadeia econômica do ouro no Brasil, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 30/07/2019, https://www.ecodebate.com.br/2019/07/30/acoes-do-mpf-no-para-apontam-provas-do-completo-descontrole-da-cadeia-economica-do-ouro-no-brasil/.

sábado, 20 de julho de 2019

RACISMO

Sobre racismo e educação: uma carta para Renata


Ouro Preto, 15 de julho de 2019.

Querida Renata!
Há tempos quero lhe escrever. O correr dos dias impediu que eu fizesse isso antes. Espero que ainda esteja em tempo de abraçá-la, de prestar solidariedade a você e a sua filha.
Acompanhei com muita tristeza e indignação o episódio em que você se viu obrigada a tirar sua filha da Edem, escola da Zona Sul do Rio de Janeiro, em razão da violência racista que ela vinha sofrendo. Escrevo para que vocês saibam que não estão sós. Escrevo por saber exatamente o que sua filha passou.
Em 1993, eu tinha praticamente a mesma idade que sua filha tem hoje. Estava na antiga 3ª série. Vivia amedrontada pela Cristiane, que era mais velha e bem mais alta do que eu. Todos os dias ela me chamava de macaca. Durante o recreio. Na hora da saída. O tempo inteiro. Nas aulas de Educação Física, bastava que eu pegasse na bola para que ela imitasse sons e gestos que lembravam animais. Era tanta perversidade que a Cristiane me chamava de macaca durante a oração do Pai Nosso, que rezávamos antes do início das aulas.
Por muito tempo, mantive tudo isso em segredo. Até que um dia não aguentei mais. Contei para a minha professora o que estava acontecendo. Nazaré pediu que eu fosse até o quadro e ficasse diante de todos os alunos. Senti uma angústia imensa. Era como se eu soubesse que algo de ruim iria acontecer. Não estava enganada. Nazaré me pegou pelo braço e disse:
– Olhem bem para a Luana! Vocês acham que ela se parece com uma macaca?
Um abismo sem fim se abriu embaixo dos meus pés. A sala foi tomada por um barulho ensurdecedor. Segurei o choro. Chorar naquele momento tornaria as coisas ainda mais difíceis. Não consegui encarar a minha turma. Olhando para o chão, ouvi gritos, batidas nas carteiras, gargalhadas e, mais uma vez, sons que lembravam animais. Nazaré, que era dada a gritar, pedia aos alunos que ficassem em silêncio. Sem sucesso. Nada era capaz de fazer com que meus colegas refletissem sobre o que se passava dentro de mim naquele momento. Nazaré deu um último grito:
– Luana, volte agora para o seu lugar! – Eu que era a vítima, fui culpabilizada pela algazarra que tomou conta da sala.
Estávamos na aula de Matemática. Aprendíamos a tabuada do três. Na tentativa de apagar o que havia acontecido, comecei a fazer contas de multiplicação mentalmente: 3X0=0, 3X1=3, 3X2=6. Fiquei tão desnorteada que não conseguia avançar. Então, começava tudo de novo: 3X0=0, 3X1=3, 3X2=6. Até que desisti. Depois daquele dia, eu que tinha excelentes notas na disciplina, não consegui ter o mesmo rendimento de antes. Ainda hoje, fazer contas simples é um verdadeiro suplício para mim.
Como você deve saber, em 2003, após longas lutas do Movimento Negro, o ex-presidente Lula sancionou a Lei n. 10.639, que obriga escolas públicas e também privadas a reconhecer e valorizar a História e a Cultura africana e afro-brasileira em sala de aula. A lei exige ainda o combate à discriminação racial existente no cotidiano escolar, de modo a construir um ambiente plural, igualitário e inclusivo para todos e todas que frequentam as escolas.
Quando casos como o da sua filha vêm a público, temos certeza de que a lei não está sendo cumprida como deveria. Em função disso, as escolas continuam sendo locais de dor, de sofrimento e de invisibilidade para crianças e jovens negros. Em todos os níveis de ensino. Pesquisas revelam que nas creches são as crianças negras que mais esperam pela troca das fraldas. São as crianças negras que levam mais tempo para receber o banho e as refeições. São as crianças negras que recebem menos afeto das educadoras.
Sabe, às vezes eu penso que as pessoas que não nasceram negras deveriam vestir a nossa pele por um único dia. Assim, elas saberiam o que significa ser negro nesse país. Saberiam o que significa ser humilhado e violentado em razão da cor desde os primeiros anos de vida. Saberiam o que é ser olhado com desprezo e desconfiança. Saberiam o que é ter a humanidade negada. Sim. Quando alguém nos chama de macaco está negando a nossa condição de gente. Quando um soldado do Exército dispara 80 tiros contra um homem negro, também.
Atualmente, dou aulas em cursos de licenciatura. Trabalho na formação de professores. Peço aos meus alunos que não sejam coniventes com o racismo que se faz presente nas escolas. Aqueles que permanecem em silêncio diante de situações como a vivida pela sua filha são tão cruéis quanto quem pratica o racismo. Enquanto educadores, precisamos lutar para que a escola seja um espaço de felicidade e de realização para meninos e meninas negras.
Como você bem sabe, a luta é dura e árdua, mas não podemos desistir, esmorecer. Acredito que ainda teremos muitas histórias bonitas para contar. Como eu disse no início dessa carta, quero que você e sua filha saibam que não estão sozinhas nessa travessia.
Vamos em frente, Renata! Vamos juntas!
Deixo um abraço grande, apertado e cheio de esperança para você.
Outro maior para sua filha.
Luana Tolentino