Prezado leitor,
Apresentamos uma série de dez artigos sobre as relações de poder na cidade de Paracatu - MG. A pretensão é contribuir para a melhor compreensão da dominação exercida pela mineradora Kinross Brasil Mineração sobre a sociedade paracatuense, que desde a sua formação, vive sob o signo da exploração de suas riquezas minerais, inicialmente pelos escravistas portugueses e paulistas e, na época recente, pelas transnacionais Rio Tinto Zinc e Kinross Gold Corporation.
Os artigos foram originalmente publicados no jornal local O Movimento, entre agosto de 2013 e julho de 2014.
Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross
Márcio José dos Santos
Inicia-se aqui um despretensioso estudo das
relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross. O objetivo
é trazer o conhecimento de eminentes cientistas sociais para compreendermos o
momento que estamos vivendo e, quiçá, trabalharmos para a construção de uma
sociedade mais justa.
O viajante que chega a Paracatu, vindo de
Cristalina, vê, primeiramente, aos pés da Serra da Boa Vista, a grande cava da
mineração, as instalações industriais e os lagos de rejeito da Kinross; somente
depois ele perceberá, ao lado, a cidade de Paracatu, que ficou pequena diante
do complexo da mina. Mas é preciso uma longa permanência para ouvir os
protestos isolados e quase sempre abafados daqueles que confrontam a
mineradora: há os que se sentem beneficiados pelo empreendimento e uma grande
maioria que prefere o silêncio: – qual seria o futuro da cidade se a mineração
acabar? – desemprego, perda de renda,
perda de negócios? – como ficarão os impactos socioambientais à conta das
futuras gerações?
O empreendimento mineral da RPM/Kinross em
Paracatu deflagrou um processo de mudanças que interferem com várias dimensões
e escalas da vida social da população do entorno: além de uma nova configuração
patrimonial (mudança de proprietários), alteraram-se o regime hídrico, a
morfologia do terreno, a qualidade de vida em seus aspectos sociais e
ambientais e emergiram novos interesses, dinâmicas socioeconômicas e conflitos
socioambientais.
Para o geógrafo Milton Santos, o espaço se
define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do
passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que
estão acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam através de
processos e funções.
A moldagem de uma nova ordem espacial é,
sobretudo, resultante de uma relação de poder. No estudo das relações de poder
existem duas abordagens que se prestam melhor para esclarecer as mudanças e
conflitos que ocorreram em Paracatu a partir da instalação da Mina Morro do
Ouro: a teoria da organização social e econômica, do sociólogo alemão Karl MaximilianWeber, e a teoria de poder e resistência, do filósofo francês Michel Foucault.
De acordo com Weber, o conceito de poder
seria simplesmente a imposição da vontade de alguém em alguma situação. Melhor,
então, pensar em disciplina, obediência e dominação. A diferença entre
disciplina e dominação é que a disciplina é a obediência habitual, sem
resistência nem crítica, enquanto a dominação é um estado de coisas pelo qual
uma vontade manifesta do dominador influi sobre os atos de outros. Em um grau
socialmente relevante, esses atos têm lugar como se aquele que dita as regras
tem o direito de fazê-lo e aquele que se submete à elas tem o dever de
obedecer.
Assim, Weber acreditava que as relações
sociais se mantinham baseadas na dominação, uma dominação legítima, segundo
ele, justificada por motivos de submissão ou princípios de autoridade. Isso o
levou a distinguir três tipos de dominação: carismática - ocorre quando um líder domina pelas suas virtudes
pessoais, que são vistas como extraordinárias pelos seus seguidores; tradicional - refere-se à tradição,
àquilo que já vem sendo realizado e continua sendo feito, quando os seguidores
aceitam o comando do líder como sendo o costume ou direito adquirido; racional-legal, que se aplica a
empreendimentos econômicos, políticos, religiosos e profissionais e onde a legitimidade
se dá pela crença e pela legalidade das normas e direitos de mando de quem
exerce a autoridade.
Weber via a burocracia e a racionalização
como o principal instrumento de dominação na sociedade moderna, capaz de
estabelecer uma relação de poder quase indestrutível.
O teórico organizacional britânico Gareth Morgan, adotando as visões de dominação de Weber e dos filósofos alemães Marx e
Michels, aponta como aspectos da dominação, entre outros:
- o sistema de classes, onde a existência de
um mercado de trabalho secundário de baixa qualificação e baixa remuneração dá
a uma organização muito mais controle sobre seu ambiente interno e externo;
- os perigos, doenças ocupacionais e
acidentes de trabalho, principalmente em países do Terceiro Mundo, onde
empresas transnacionais envolvem-se em práticas perigosas, livres das
regulamentações sobre saúde impostas em seus países de origem, e
- as limitações da legislação, onde os
agentes de segurança de empreendimentos de alto risco são pagos pela empresa em
questão, estabelecendo-se assim o automonitoramento.
Para Morgan, são as multinacionais que estão mais
próximas de concretizar os piores medos de Max Weber com relação a como as
organizações burocráticas podem tornar-se regimes totalitários servindo aos
interesses das elites, onde os detentores do controle podem exercer um poder
praticamente indestrutível.
A crítica ao aspecto repulsivo da atuação das
multinacionais no Terceiro Mundo é assim resumido por Morgan:
- o efeito das multinacionais sobre as
economias das nações anfitriãs é basicamente de exploração;
- elas exploram as populações locais,
usando-as como escravos assalariados, muitas vezes substituindo o trabalho
sindicalizado;
- embora aleguem que estão levando capital e
tecnologia para os países anfitriões, o resultado geralmente é uma saída
líquida de capitais e o controle sobre a tecnologia que introduzem;
- frequentemente disfarçam o excesso de
lucros e evitam pagar os impostos devidos para as nações anfitriãs por meio de ‘preços
de transferência’;
- de modo geral fazem duras barganhas com as
nações e comunidades hospedeiras, jogando um grupo contra o outro para
conseguir concessões excepcionais.
Segundo
Morgan, os críticos radicais das organizações atribuem parte da culpa da
dominação das multinacionais às classes dominantes locais, por participarem da
dominação, cooperando ativamente e muitas vezes envolvendo-se em acordos que as
beneficiam à custa das comunidades e da nação.
Caro
leitor, continue conosco no próximo capítulo, quando faremos uma abordagem da
questão segundo o pensamento de Michel Foucault.
Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 442, agosto de 2013, pág. 2.
Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 442, agosto de 2013, pág. 2.