Blog do Professor Márcio

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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O Garimpo em Paracatu: Uma história que precisa ser contada – Capítulo VI


Um fato notável, que se constata a partir da documentação relativa à história do garimpo nas décadas de 1980 e 1990, é que, embora tenha havido forte resistência dos garimpeiros ao poder da mineradora RPM, nunca houve uma liderança a conduzir o movimento. 
Num breve período, entre 1987 e 1989, elementos que conduziam a Cooperativa dos Garimpeiros pareciam despontar como lideranças ao se colocarem à frente de negociações com o governo municipal e o DNPM. Como a grande massa de garimpeiros era analfabeta ou, pelo menos, semi-analfabeta, algumas pessoas mais esclarecidas, donos de garimpo, como Dr. Avelino Couto, José Osório, Rubens Lisboa e Joanil Lima negociaram com a Prefeitura e o DNPM um programa de despoluição e desassoreamento dos córregos onde ocorria o garimpo. Foi um curto período de articulação da resistência, logo surpreendida pela primeira decisão de fechar o garimpo, determinada pelo Secretário de Estado do Meio Ambiente e Presidente do COPAM, José Ivo Gomes, em outubro de 1989.
Sem liderança, a resistência dos garimpeiros prosseguiu espontânea e fragmentada. Em 1995, apareceu uma nota no jornal O Movimento intitulada “Utilidade pública e preservação ambiental”, dando conta da criação, em 11 de junho de 1995, do Sindicato dos Garimpeiros de Paracatu. Não há registro de ações desse Sindicato à frente do movimento dos garimpeiros e do mesmo modo que surgiu ele desapareceu, na obscuridade.
A posição dos setores dominantes da sociedade paracatuense em relação ao domínio da RPM sobre o tecido social pode ser melhor esclarecida pela análise do fato ocorrido poucos meses antes de um acontecimento trágico em meados de 1998. Em 28 de novembro de 1997, a Câmara Legislativa concedeu o título de Cidadão Honorário de Paracatu ao gerente geral da mineradora, em sessão solene seguida de coquetel, onde estava presente a nata da sociedade local. Esse título foi iniciativa de um vereador que, em 1991, havia atuado como advogado de defesa de garimpeiros presos e torturados a mando da mineradora, como também atuou na denúncia de agressões ambientais que estavam sofrendo as populações dos bairros periféricos da mina, por causa das explosões na área de lavra. Trecho do seu discurso de justificativa da concessão do título ao gerente geral da RPM mostra a relação da classe social abastada diante do novo poder que se instalou e se estendia numa rede cada vez mais ampla: “Ainda bem que podemos contar com tua pessoa no contexto econômico de Paracatu, que além de dirigir a empresa, tem em sua conduta a sensibilidade social para ajudar humanitariamente nossa comunidade (...)se irmanando com todos seus cidadãos da vestuta Paracatu do Príncipe, na consecução do bem e amparo aos menos favorecidos” (O Movimento, Ed. 145, dez/1997b, p. 8).
Saudada na “casa do povo” por um expoente da classe dominante local, a empresa recebeu desta um aval para intensificar a repressão aos garimpeiros. A despeito de reprimir brutalmente a classe mais pobre da cidade e se orientar apenas pelos ditames do capital, a mineradora conseguia produzir um discurso exatamente oposto, de conduta humanitária com objetivo de amparar os menos favorecidos. Esse discurso ainda hoje continua produzindo as verdades do poder dominante e legitimando suas ações.
O acontecimento trágico, a que nos referimos anteriormente, no violento conflito entre os garimpeiros e a RPM, foi a agressão armada a três garimpeiros, resultando na morte de um deles e ferimentos nos outros dois. O aspecto deplorável deste fato é que a imprensa só o noticiou com uma nota de esclarecimento da empresa. Não foi apresentada matéria jornalística, investigativa, que deixasse claro para a sociedade o que tinha ocorrido: o discurso da empresa calou todas as vozes.
A nota que a RPM divulgou à imprensa, entre outras coisas, dizia que na madrugada de 27 de junho de 1998, quatro vigilantes surpreenderam os garimpeiros no canal de rejeito e que estes reagiram com paus e pedras. Afirma a nota:
O saldo desta invasão é lamentável. Os funcionários da RPM saíram feridos, sendo que um deles em estado grave e, segundo consta, três invasores também foram feridos. Um destes veio a falecer após ser submetido a uma cirurgia. Foi confirmado que todo atendimento de primeiros socorros aos feridos, sejam funcionários da empresa ou invasores, foi prestado pela equipe do serviço médico da própria RPM, sendo conduzidos, a seguir, para hospitais da cidade na ambulância da empresa. (...) Infelizmente, mesmo após várias detenções e prisões efetuadas, os invasores vêm se organizando e constituindo quadrilhas cada vez mais perigosas e violentas.

Observa-se, na nota, que a mineradora se colocava como vítima da violência e ainda assim prestou todos os serviços médicos no socorro aos garimpeiros, aos quais classificava como bandidos constituídos em quadrilhas perigosas e violentas.
A versão dos garimpeiros nunca apareceu na imprensa de Paracatu; na época, sequer foram divulgados os nomes dos atingidos, tratados assim como “não-pessoas”. Os três garimpeiros eram irmãos, residentes na localidade Machadinho, hoje reconhecida como comunidade quilombola. Nasceram naquele local, como descendentes de escravos que se fixaram próximo ao Morro do Ouro, cujo modo de subsistência sempre incluiu a faiscação naquela área, até que a mineradora se instalou ali. Seus nomes: Luis Oliveira Lopes, que morreu logo após chegar ao hospital, José Oliveira Lopes, que foi atingido na perna e ficou paralítico, vindo a falecer dois anos depois em consequência dos ferimentos, e Evandro Oliveira Lopes, que foi atingido no braço e ainda está vivo, embora com o braço inutilizável para o trabalho.
A versão dos garimpeiros somente surgiria dez anos depois no documentário Ouro de Sangue, através do sobrevivente Evandro Oliveira Lopes. Ele afirma que:
Teve um telefonema que “os Canela tava lá”. Eles foram pra estrada pra esperar nós. Aí, nós passou pra dentro, eles deixou nós passar, só que nós chegou lá, na beirada lá, nós viu que não dava pra trabalhar. Tinha vigilância pra todo lado lá. Aí meu irmão falou assim: vamos voltar pra trás! Nós já tava saindo de dentro da firma, pegou material, pegou nada, aí o que nós recebeu foi só os tiros. Aí, eles falou assim: “É os Canela, vamos matar agora”. Quando eu cheguei a pegar meu irmão assim, aí só vi meu braço... desceu o braço. Levei só um tiro no braço, hoje em dia ele é torto (...) não aguento pegar um peso. O outro tomou um tiro na perna, ficou inválido, andando aí de cadeira de rodas muito tempo, ficou na cadeira de rodas até morrer.
Orlando Oliveira Lopes, sobrevivente da chacina dos Irmãos  Canela, presta depoimento ao filme documentário Ouro de Sangue, em 2008.
 Em depoimento registrado nesta pesquisa, a mãe dos três garimpeiros atingidos, Sra. Ana Lopes de Morais, e sua filha Aparecida Teixeira dos Santos, avançam com uma informação fundamental para mostrar os métodos cruéis, desumanos e repulsivos da repressão aos garimpeiros por parte da mineradora: os três irmãos foram atingidos por balas dundum.
Bala dundum é o nome do projétil concebido para se expandir e se fragmentar dentro do alvo atingido, provocando um ferimento extenso e dores lancinantes. Por motivos humanitários, a Convenção de Genebra de 1980, da qual o Brasil é signatário, através do seu Protocolo I sobre Fragmentos Não-Detectáveis, proibiu o uso de armas de fogo que podem ser consideradas como excessivamente lesivas ou geradoras de efeitos indiscriminados, como é o caso da bala dundum
As depoentes, ao descreverem o episódio, assim se expressam:
Aparecida: (...) Um morreu na hora, o outro depois de algum tempo...
Ana: A perna esbagaçou tudo o osso, o outro destruiu a barriga, virou carne moída...
Aparecida: Porque eles usou aquela bala que explode, ela destruiu a perna dele.
Márcio: É? Aquela bala que explode dentro da pessoa?
Ana: É, aquela que eles usou pra matar...
Aparecida: Aí, deu um tempo, depois ele acabou morrendo devido ao problema. A gente não sabe direito como é que foi esse processo, eu mesma não sei te dar informação mais precisa, não.
Ana: Como é que eu posso agradecer a essa RPM?
Aparecida: Nada! (...)
Ana: Pois é, ele morreu por causa disso. Eu não falo bem dela nem lá dentro do escritório é que eu não falo.
Márcio: Porque esse tipo de munição é proibido.
Aparecida: Foi o que na época as pessoas, todo mundo falou que era proibido, não podia.
Ana: Todos dois, pai de família.
Aparecida: Se não fosse esse tipo de bala eles não tinham morrido.
Ana: Todos dois novo, pai de família, largou a família tudo aí.
(Entrevista realizada pelo Autor em 04/01/2012)
Ana Lopes de Moais, conhecida como Dona Tuta, mãe dos Irmãos Canela, nascida e criada no Machadinho.
Não obstante esse crime repugnante, afora o boletim de ocorrência, que é obrigatório num caso destes, não houve investigação policial e muito menos processo criminal. Houve um efeito silenciador e conivente. José Luis Oliveira Lopes contratou advogado, inclusive porque ficara paralítico e queria reparação; entretanto, seu advogado não deu surgimento a um processo criminal; sem condições para se tratar, os ferimentos recebidos levaram o garimpeiro à morte, sem reparação.
Você, caro leitor, certamente deve estar se perguntando: - Como reagiram as autoridades públicas? Como reagiu a sociedade paracatuense? Como reagiu cada um de nós diante dos crimes torpes praticados pela mineradora estrangeira contra nossos concidadãos? Vejamos no próximo capítulo.

Palavras-chave: Paracatuarsênioouromeio ambiente; garimpoGarimpo em Paracatu

2 comentários:

Anônimo disse...

Marcio no seu perfil não existe email para contato. Não tem como falar com você direto no blog.

Márcio José dos Santos disse...

Prezad@,
Desculpe-me a falha. Para se comunicar comigo pode usar o endereço professormarciosantos@gmail.com.
Márcio