Blog do Professor Márcio

Seja bem vindo. Gosto de compartilhar ideias e sua visita é uma contribuição para isto. Volte sempre!

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O Garimpo em Paracatu Uma história que precisa ser contada – Capítulo I


Quando Paracatu completa, a cada 20 de outubro, mais um aniversário de sua criação, quase invariavelmente se faz uma comemoração cívica com desfiles alegóricos de exaltação das raízes da cidade: o garimpo e a colonização portuguesa, sustentados pelo trabalho dos negros trazidos da África. A memória coletiva produz a revisão das lembranças para dar certo ar de “glamour” ao passado, depurando-as dos fatos inconvenientes para transformar o passado naquilo que deveria ter sido, eliminando as cenas indesejáveis e adequando as prediletas. Parece que na memória coletiva de Paracatu ficaram eliminados o sofrimento e a injustiça contra a raça negra escravizada – os primeiros garimpeiros –, para se criar o mito de uma sociedade harmônica, com os negros transformados em uma turma comportada, bem nutrida e feliz, sob o comando de brancos fraternos, tolerantes e cultos – a Paracatu do Príncipe.
Portanto, memória não é sinônimo de história ou de realidade histórica passada. Mas de qualquer forma, a memória é a matéria-prima da história, que dela se alimenta. Na medida em que a memória é uma construção coletiva, ela também faz uso do esquecimento (há esquecimentos que são usados para certos fins), pois ela expressa relações de poder e de interesses, sendo assim uma matéria-prima “adulterada”.
Nossa intenção é reescrever aqui a história do garimpo em Paracatu com base em registros encontrados principalmente no jornal O Movimento e em outros documentos aos quais tivemos acesso, complementando-os com depoimentos de pessoas relacionadas ao garimpo, a partir de um trabalho de pesquisa em nível de mestrado. Existe um período que nos interessa de modo especial: o garimpo mecanizado que se instalou em Paracatu no final da década de 1980 e a subsequente “invasão” da área da barragem de rejeitos da RPM. Apesar da proximidade na escala do tempo, existem poucos registros documentados deste importante período da história paracatuense, de maneira que se torna importante resgatar a memória viva de pessoas que estiveram envolvidas nos acontecimentos.


O garimpo artesanal em Paracatu


No início do século XVIII, quando a exploração do ouro fundou o povoado de São Luis das Minas de Paracatu, o garimpo era a forma avançada de produção, baseada no trabalho escravo e utilizando métodos rudimentares de separação, como o caixote e a bateia para a concentração do minério, e o imã e assopramento para retirar os minerais magnéticos presentes na ganga. Esse sistema foi responsável pelo esplendor da antiga Vila do Paracatu do Príncipe, que, entretanto, teve curta duração. Ainda no mesmo século, o ouro se esgotou nos cascalhos e a vila entrou em decadência. As grandes fazendas de criação extensiva de gado de corte tornaram-se a maior força da economia local, concentrada em poucas mãos. As práticas garimpeiras, no entanto, persistiram nas mãos de negros e mulatos, como forma de subsistência ou de complementação de renda.
Estatísticas referentes à população de Paracatu dão conta do esvaziamento demográfico que acompanhou o escasseamento do ouro.  Em 1746, quando ainda era Arraial de São Luiz e Santana das Minas do Paracatu, tomando-se apenas a população escrava, havia 7.392 pessoas. Porém, no início do século XIX, a população total de Paracatu – 2933 pessoas, dos quais apenas 266 eram brancos – não chegava à metade da população negra de 1746, no auge da mineração de ouro. Parte dos escravos do garimpo foi levada para outras regiões e atividades. Negros livres e mulatos livres se dirigiram a outras regiões ou permaneceram na vila, nas margens dos córregos ou em povoamentos rurais em torno do Morro do Ouro, onde também havia depósitos de ouro. Nasceram, assim, os bairros negros Santana e Arraial D’Angola e o povoado São Domingos, hoje reconhecido como quilombo.
Livre dos chamados “donos de garimpo”, a população pobre de Paracatu, na grande maioria afrodescendente, teve na técnica de produção do garimpo tradicional, sem utilização de amalgamação com mercúrio, importante instrumento de sobrevivência, que persistiu desde o século XVIII até a proibição do garimpo, na década de 1980. Tanto o fim do primeiro ciclo do ouro quanto o fim da escravidão foram marcantes para criar uma população negra livre, mas marginalizada social e economicamente, condenada ao desemprego ou ao subemprego. Especialmente no período de seca, quando escasseavam ainda mais as oportunidades de trabalho na agropecuária e em outras alternativas econômicas, como a agricultura de subsistência, eram os cascalhos auríferos que ofereciam oportunidade líquida de obter recursos financeiros.
As aluviões do Córrego Rico formavam “praias” de cascalho, com largura variável de alguns metros a dezenas de metros, onde lavadeiras de roupa, crianças e garimpeiros se misturavam. Cada estação chuvosa sempre recompunha a paisagem e depositava ouro nos sedimentos superficiais, oferecendo oportunidades de trabalho aos homens que não tinham renda suficiente para a manutenção da família, ou também para mulheres e crianças que buscavam uma complementação da renda familiar.
A foto a seguir ilustra as condições em que o garimpo tradicional se processava.
Garimpo artesanal na água límpida do Córrego Rico. Mulher trabalha com instrumentos rudimentares para retirar o ouro do cascalho, enquanto a roupa lavada seca no varal, ao fundo. Foto de Otto Dornfield (1938), gentilmente cedida pelo Arquivo Público Municipal de Paracatu.

O historiador Marcos Spagnuolo de Souza, no livro “Vidas Vividas em Paracatu” nos oferece depoimentos que ilustram a prática do garimpo artesanal em Paracatu na primeira metade do século XX: o uso de instrumentos rudimentares, como pá, enxada, caixote e pano; o ouro apurado na bateia, sem uso de mercúrio; o envolvimento da população pobre na prática do garimpo, inclusive mulheres e jovens.
Como não havia abastecimento público de água, que só foi implantado em 1958, exceto por alguns chafarizes no centro da cidade, a população se abastecia em cisternas de fundo de quintal ou nas cacimbas abertas nas praias do Córrego Rico. Portanto, o garimpo artesanal não poluía as águas, que se ofereciam límpidas. Uma alternativa de renda para as mulheres mais pobres, além do garimpo tradicional, era o trabalho como lavadeiras de roupa, e para isto as cacimbas eram fundamentais, especialmente no período de seca. Uma escavação aberta no cascalho pelos garimpeiros, para atingir camadas mais profundas que pudessem ser mais produtivas, acabava se transformando em cacimba, útil para as lavadeiras.
Essa descrição demonstra que o garimpo artesanal, longe de ser elemento de degradação ambiental, se harmonizava com a vida de grande parcela da população pobre de Paracatu, num quadro de sustentabilidade social e ecológica ao longo de várias gerações.
A estagnação econômica e o isolamento geográfico de Paracatu viriam a ser rompidos a partir do final da década de 1950, com a construção da nova capital brasileira. O “boom” econômico do município ocorreria na década de 1980, quando houve um grande surto garimpeiro, com uso de máquinas e de mercúrio, e se estabeleceram grandes projetos agrícolas com uso de tecnologia avançada de produção e dois grandes projetos de mineração – Morro do Ouro (ouro e prata) e Morro Agudo (chumbo e zinco). Este assunto será o tema de nosso próximo capítulo.

Palavras-chave: ParacatuKinrossarsênioouromeio ambiente; garimpo; mineração

Nenhum comentário: