Quando
Paracatu completa, a cada 20 de outubro, mais um aniversário de sua
criação, quase invariavelmente se faz uma comemoração cívica com desfiles alegóricos
de exaltação das raízes da cidade: o
garimpo e a colonização portuguesa, sustentados pelo trabalho dos negros
trazidos da África. A memória coletiva produz a revisão das lembranças para dar
certo ar de “glamour” ao passado,
depurando-as dos fatos inconvenientes para transformar o passado naquilo que
deveria ter sido, eliminando as cenas indesejáveis e adequando as prediletas. Parece
que na memória coletiva de Paracatu ficaram eliminados o sofrimento e a
injustiça contra a raça negra escravizada – os primeiros garimpeiros –, para se
criar o mito de uma sociedade harmônica, com os negros transformados em uma
turma comportada, bem nutrida e feliz, sob o comando de brancos fraternos,
tolerantes e cultos – a Paracatu do Príncipe.
Portanto,
memória não é sinônimo de história ou de realidade histórica passada. Mas de
qualquer forma, a memória é a matéria-prima da história, que dela se alimenta.
Na medida em que a memória é uma construção coletiva, ela também faz uso do
esquecimento (há esquecimentos que são usados para certos fins), pois ela
expressa relações de poder e de interesses, sendo assim uma matéria-prima “adulterada”.
Nossa
intenção é reescrever aqui a história do garimpo em Paracatu com base em
registros encontrados principalmente no jornal O Movimento e em outros
documentos aos quais tivemos acesso, complementando-os com depoimentos de
pessoas relacionadas ao garimpo, a partir de um trabalho de pesquisa em nível de mestrado. Existe um período que nos interessa de modo
especial: o garimpo mecanizado que se instalou em Paracatu no final da década
de 1980 e a subsequente “invasão” da área da barragem de rejeitos da RPM. Apesar
da proximidade na escala do tempo, existem poucos registros documentados deste
importante período da história paracatuense, de maneira que se torna importante
resgatar a memória viva de pessoas que estiveram envolvidas nos acontecimentos.
O garimpo artesanal em Paracatu
No início do
século XVIII, quando a exploração do ouro fundou o povoado de São Luis das
Minas de Paracatu, o garimpo era a forma avançada de produção, baseada no
trabalho escravo e utilizando métodos rudimentares de separação, como o caixote
e a bateia para a concentração do minério, e o imã e assopramento para retirar
os minerais magnéticos presentes na ganga. Esse sistema foi responsável pelo
esplendor da antiga Vila do Paracatu do Príncipe, que, entretanto, teve curta
duração. Ainda no mesmo século, o ouro se esgotou nos cascalhos e a vila entrou
em decadência. As
grandes fazendas de criação extensiva de gado de corte tornaram-se a maior
força da economia local, concentrada em poucas mãos. As práticas garimpeiras,
no entanto, persistiram nas mãos de negros e mulatos, como forma de
subsistência ou de complementação de renda.
Estatísticas
referentes à população de Paracatu dão conta do esvaziamento demográfico que
acompanhou o escasseamento do ouro. Em
1746, quando ainda era Arraial de São Luiz e Santana das Minas do Paracatu,
tomando-se apenas a população escrava, havia 7.392 pessoas. Porém, no início do
século XIX, a população total de Paracatu – 2933 pessoas, dos quais apenas 266 eram brancos – não chegava à
metade da população negra de 1746, no auge da mineração de ouro. Parte dos
escravos do garimpo foi levada para outras regiões e atividades. Negros livres
e mulatos livres se dirigiram a outras regiões ou permaneceram na vila, nas
margens dos córregos ou em povoamentos rurais em torno do Morro do Ouro, onde
também havia depósitos de ouro. Nasceram, assim, os bairros negros Santana e
Arraial D’Angola e o povoado São Domingos, hoje reconhecido como quilombo.
Livre dos chamados
“donos de garimpo”, a população pobre de Paracatu, na grande maioria
afrodescendente, teve na técnica de produção do garimpo tradicional, sem
utilização de amalgamação com mercúrio, importante instrumento de
sobrevivência, que persistiu desde o século XVIII até a proibição do garimpo,
na década de 1980. Tanto o fim do primeiro ciclo do ouro quanto o fim da
escravidão foram marcantes para criar uma população negra livre, mas
marginalizada social e economicamente, condenada ao desemprego ou ao subemprego.
Especialmente no período de seca, quando escasseavam ainda mais as
oportunidades de trabalho na agropecuária e em outras alternativas econômicas,
como a agricultura de subsistência, eram os cascalhos auríferos que ofereciam
oportunidade líquida de obter recursos financeiros.
As aluviões
do Córrego Rico formavam “praias” de cascalho, com largura variável de alguns
metros a dezenas de metros, onde lavadeiras de roupa, crianças e garimpeiros se
misturavam. Cada estação chuvosa sempre recompunha a paisagem e depositava ouro
nos sedimentos superficiais, oferecendo oportunidades de trabalho aos homens
que não tinham renda suficiente para a manutenção da família, ou também para
mulheres e crianças que buscavam uma complementação da renda familiar.
A foto a seguir
ilustra as condições em que o garimpo tradicional se processava.
O historiador Marcos Spagnuolo de Souza, no livro “Vidas Vividas em Paracatu” nos oferece depoimentos que ilustram a prática do garimpo artesanal em Paracatu na primeira metade do século XX: o uso de instrumentos rudimentares, como pá, enxada, caixote e pano; o ouro apurado na bateia, sem uso de mercúrio; o envolvimento da população pobre na prática do garimpo, inclusive mulheres e jovens.
Como não
havia abastecimento público de água, que só foi implantado em 1958, exceto por
alguns chafarizes no centro da cidade, a população se abastecia em cisternas de
fundo de quintal ou nas cacimbas abertas nas praias do Córrego Rico. Portanto,
o garimpo artesanal não poluía as águas, que se ofereciam límpidas. Uma
alternativa de renda para as mulheres mais pobres, além do garimpo tradicional,
era o trabalho como lavadeiras de roupa, e para isto as cacimbas eram
fundamentais, especialmente no período de seca. Uma escavação aberta no cascalho
pelos garimpeiros, para atingir camadas mais profundas que pudessem ser mais
produtivas, acabava se transformando em cacimba, útil para as lavadeiras.
Essa
descrição demonstra que o garimpo artesanal, longe de ser elemento de
degradação ambiental, se harmonizava com a vida de grande parcela da população
pobre de Paracatu, num quadro de sustentabilidade social e ecológica ao longo
de várias gerações.
A estagnação
econômica e o isolamento geográfico de Paracatu viriam a ser rompidos a partir
do final da década de 1950, com a construção da nova capital brasileira. O “boom” econômico do município ocorreria
na década de 1980, quando houve um grande surto garimpeiro, com uso de máquinas
e de mercúrio, e se estabeleceram grandes projetos agrícolas com uso de
tecnologia avançada de produção e dois grandes projetos de mineração – Morro do
Ouro (ouro e prata) e Morro Agudo (chumbo e zinco). Este assunto será o tema de
nosso próximo capítulo.
Palavras-chave: Paracatu; Kinross; arsênio; ouro; meio ambiente; garimpo; mineração
Palavras-chave: Paracatu; Kinross; arsênio; ouro; meio ambiente; garimpo; mineração
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