Blog do Professor Márcio

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domingo, 24 de março de 2013

O Garimpo em Paracatu Uma história que precisa ser contada - Capítulo VII


Concluímos o capítulo anterior com uma pergunta: como reagiu a sociedade paracatuense diante da repressão aos garimpeiros por parte da mineradora RPM? A resposta é curta e incômoda: as reações variaram do alheamento à passividade e até mesmo à aprovação da violenta repressão. Muitos aceitaram a versão da empresa de que se tratava da defesa do patrimônio contra a invasão de bandidos armados; ninguém questionou o fato de que os “bandidos” eram invariavelmente negros, descendentes de escravos que se fixaram próximos ao Morro do Ouro, cujas práticas de sobrevivência incluíam a faiscação.
Longe deste Autor explicar a repressão pelas características da empresa. Fosse outra mineradora, a repressão também seria brutal, porque qualquer empresa aqui instalada sempre refletirá a sociedade em que ela se insere. A brutalidade da repressão é uma decorrência da natureza da própria sociedade brasileira e, especificamente, paracatuense. Esta cidade aparentemente pacata nasceu sob o signo da escravidão e suas sequelas marcaram o longo período de domínio dos coronéis: aqui a prepotência ainda é vista como direito legítimo do mais forte. Acrescente-se que os fatos narrados nesta história ocorreram logo após o final da ditadura militar, período em que o questionamento do abuso de poder era severamente punido, entendido como subversão dos valores da “sociedade cristã e democrática”.
Vasculhando os jornais de Paracatu do ano de 1998 não se vê uma única nota que se referisse ao conflito com os garimpeiros, que ainda prosseguia na área da barragem.  Mas, em fevereiro de 1999, como narrou o jornal O Movimento, um dos vereadores, Archanjo Mendes Santiago, resolveu levantar a voz na tribuna da Câmara, e sua fala repercutiu na imprensa, levando à tomada de posição dos vereadores. O vereador Archanjo condenou a prisão, dias antes, de alguns garimpeiros na área da barragem de rejeito da RPM, entre eles pessoas idosas, dizendo reconhecer o direito de propriedade da empresa, mas que as pessoas presas eram honestas e só recorriam à garimpagem proibida como último recurso de sobrevivência, cada vez mais difícil com a crise do desemprego. Segundo ele, a situação era tensa, porque nos bairros da periferia havia reuniões constantes para organizar os garimpeiros, que mais fortes poderiam buscar uma solução para o garimpo.
Em 2 de março de 2000, uma comissão de garimpeiros procurou o prefeito Almir Paraca para ajudar na soltura de companheiros presos e na liberação do garimpo na área de rejeitos, já que nada ali interessava à RPM, suas famílias passavam fome e não havia trabalho na cidade. A resposta do prefeito é que nada poderia fazer pelos presos, já que a questão estava entregue à Polícia e à Justiça, e quanto ao desemprego, isto era problema do governo federal. Após a entrevista com o prefeito, os garimpeiros saíram em passeata pela cidade.
A violência da repressão iria marcar mais um ponto no ano seguinte, quando na madrugada de 24 de março de 2000 um grupo de garimpeiros foi surpreendido na área de rejeitos pelos seguranças da mineradora. Na versão dos vigilantes, quando eles tentaram retirar os invasores do local, estes reagiram com pedaços de pau e facões, dando origem a um conflito generalizado, momento em que o vigilante João Antonio atingiu um dos garimpeiros com um tiro no tórax.  O garimpeiro Sandro Monteiro dos Santos, com apenas 22 anos, morreu logo ali.
Mais tarde, outro garimpeiro, Éris Ribeiro Pereira, deu entrada no Hospital Municipal com perfuração à bala no pé esquerdo. Éris, filho de Dona Nega, residente no bairro Lavrado II, vizinho à mina, era primo de Sandro, ambos nascidos em famílias negras tradicionalmente faiscadoras. O vigilante identificado pela morte de Sandro, João Antonio, em depoimento à Polícia Militar, contou que tudo começou porque ele e seus companheiros foram ameaçados pelos garimpeiros e, no meio da confusão, ouviu-se um disparo que foi respondido por ele com outro disparo “para o alto”. Mais tarde, revoltados com a morte do companheiro, centenas de garimpeiros realizaram uma passeata no centro da cidade e se concentraram na frente da Prefeitura. Depois, dirigiram-se a pé até a sede da RPM, sendo contidos pela Polícia Militar.
Embora seja louvável que a imprensa local tenha noticiado este assassinato, ela só apresentou a versão dos seguranças da RPM, isto é, a versão da empresa. Nenhum jornal concedeu voz aos atingidos pela violência. Além disso, os títulos das matérias enfatizaram o confronto entre garimpeiros e seguranças, omitindo o nome da mineradora, induzindo tratar-se de um problema entre estes, desqualificando o significado real profundo desse conflito social, ou socioambiental, entre dominados e dominantes.
Contudo, ressalte-se que nesta edição do jornal O Movimento (Ed. 195, março/2000, p. 1), pela primeira vez foram divulgados na imprensa os nomes dos garimpeiros atingidos em 27 de junho de 1998 – os irmãos Canela –, quase dois anos após a tragédia.
Foi também um momento de coragem e de indignação do Editor do jornal O Movimento, José Edmar Gomes, que na sua coluna escreveu: “(...) É, no mínimo, contraditório que as vítimas sejam da classe social que a mineradora queira alcançar com suas ações de cunho filantrópico. Os cidadãos desesperados que invadem a área da empresa em busca de alguns gramas de ouro para amenizar a miséria de suas vidas, certamente, veem naquele território um oásis onde imperam os bons modos, os bons salários e, sobretudo, sobras generosas do precioso metal. De outra forma, uma multinacional do Primeiro Mundo, que extrai quilos e quilos de ouro por dia, instalada em uma cidade brasileira com alto percentual de desempregados, sem dúvida, desperta um sentimento de inconformismo entre aqueles que, num passado recente, se valiam do aluvião do Morro do Ouro em suas necessidades mais agudas.”
A versão do episódio por parte dos garimpeiros só viria a público em 2008, através do filme documentário Ouro de Sangue, na voz de Éris Ribeiro Pereira, quando afirma que seu primo Sandro foi capturado e espancado pelos seguranças, que depois o mataram com um tiro nas costas. Éris conseguiu escapar, mas levou um tiro no pé no momento em que saltava o barranco. O segurança da RPM que matou Sandro foi julgado e condenado a um ano de prisão, em regime semiaberto.
Poder, Lei e Justiça: em qual deles você acredita, caro leitor? Continue conosco no próximo capítulo.

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