Concluímos o
capítulo anterior com uma pergunta: como reagiu a sociedade paracatuense diante
da repressão aos garimpeiros por parte da mineradora RPM? A resposta é curta e
incômoda: as reações variaram do alheamento à passividade e até mesmo à
aprovação da violenta repressão. Muitos aceitaram a versão da empresa de que se
tratava da defesa do patrimônio contra a invasão de bandidos armados; ninguém
questionou o fato de que os “bandidos” eram invariavelmente negros,
descendentes de escravos que se fixaram próximos ao Morro do Ouro, cujas
práticas de sobrevivência incluíam a faiscação.
Longe deste
Autor explicar a repressão pelas características da empresa. Fosse outra
mineradora, a repressão também seria brutal, porque qualquer empresa aqui
instalada sempre refletirá a sociedade em que ela se insere. A brutalidade da
repressão é uma decorrência da natureza da própria sociedade brasileira e,
especificamente, paracatuense. Esta cidade aparentemente pacata nasceu sob o
signo da escravidão e suas sequelas marcaram o longo período de domínio dos
coronéis: aqui a prepotência ainda é vista como direito legítimo do mais forte.
Acrescente-se que os fatos narrados nesta história ocorreram logo após o final
da ditadura militar, período em que o questionamento do abuso de poder era
severamente punido, entendido como subversão dos valores da “sociedade cristã e
democrática”.
Vasculhando
os jornais de Paracatu do ano de 1998 não se vê uma única nota que se referisse
ao conflito com os garimpeiros, que ainda prosseguia na área da barragem. Mas, em fevereiro de 1999, como narrou o
jornal O Movimento, um dos
vereadores, Archanjo Mendes Santiago, resolveu levantar a voz na tribuna da
Câmara, e sua fala repercutiu na imprensa, levando à tomada de posição dos
vereadores. O vereador Archanjo condenou a prisão, dias antes, de alguns
garimpeiros na área da barragem de rejeito da RPM, entre eles pessoas idosas,
dizendo reconhecer o direito de propriedade da empresa, mas que as pessoas
presas eram honestas e só recorriam à garimpagem proibida como último recurso
de sobrevivência, cada vez mais difícil com a crise do desemprego. Segundo ele,
a situação era tensa, porque nos bairros da periferia havia reuniões constantes
para organizar os garimpeiros, que mais fortes poderiam buscar uma solução para
o garimpo.
Em 2 de março
de 2000, uma comissão de garimpeiros procurou o prefeito Almir Paraca para
ajudar na soltura de companheiros presos e na liberação do garimpo na área de
rejeitos, já que nada ali interessava à RPM, suas famílias passavam fome e não
havia trabalho na cidade. A resposta do prefeito é que nada poderia fazer pelos
presos, já que a questão estava entregue à Polícia e à Justiça, e quanto ao
desemprego, isto era problema do governo federal. Após a entrevista com o
prefeito, os garimpeiros saíram em passeata pela cidade.
A violência
da repressão iria marcar mais um ponto no ano seguinte, quando na madrugada de
24 de março de 2000 um grupo de garimpeiros foi surpreendido na área de
rejeitos pelos seguranças da mineradora. Na versão dos vigilantes, quando eles
tentaram retirar os invasores do local, estes reagiram com pedaços de pau e
facões, dando origem a um conflito generalizado, momento em que o vigilante João
Antonio atingiu um dos garimpeiros com um tiro no tórax. O garimpeiro Sandro Monteiro dos Santos, com
apenas 22 anos, morreu logo ali.
Mais tarde,
outro garimpeiro, Éris Ribeiro Pereira, deu entrada no Hospital Municipal com perfuração
à bala no pé esquerdo. Éris, filho de Dona Nega, residente no bairro Lavrado
II, vizinho à mina, era primo de Sandro, ambos nascidos em famílias negras tradicionalmente
faiscadoras. O vigilante identificado pela morte de Sandro, João Antonio, em
depoimento à Polícia Militar, contou que tudo começou porque ele e seus
companheiros foram ameaçados pelos garimpeiros e, no meio da confusão, ouviu-se
um disparo que foi respondido por ele com outro disparo “para o alto”. Mais
tarde, revoltados com a morte do companheiro, centenas de garimpeiros
realizaram uma passeata no centro da cidade e se concentraram na frente da
Prefeitura. Depois, dirigiram-se a pé até a sede da RPM, sendo contidos pela Polícia
Militar.
Embora seja
louvável que a imprensa local tenha noticiado este assassinato, ela só
apresentou a versão dos seguranças da RPM, isto é, a versão da empresa. Nenhum
jornal concedeu voz aos atingidos pela violência. Além disso, os títulos das
matérias enfatizaram o confronto entre garimpeiros e seguranças, omitindo o
nome da mineradora, induzindo tratar-se de um problema entre estes,
desqualificando o significado real profundo desse conflito social, ou
socioambiental, entre dominados e dominantes.
Contudo, ressalte-se
que nesta edição do jornal O Movimento (Ed.
195, março/2000, p. 1), pela primeira vez foram divulgados na imprensa os nomes
dos garimpeiros atingidos em 27 de junho de 1998 – os irmãos Canela –, quase
dois anos após a tragédia.
Foi também um
momento de coragem e de indignação do Editor do jornal O Movimento, José Edmar Gomes, que na sua coluna escreveu: “(...) É, no mínimo, contraditório que as vítimas
sejam da classe social que a mineradora queira alcançar com suas ações de cunho
filantrópico. Os cidadãos desesperados que invadem a área da empresa em busca
de alguns gramas de ouro para amenizar a miséria de suas vidas, certamente, veem
naquele território um oásis onde imperam os bons modos, os bons salários e,
sobretudo, sobras generosas do precioso metal. De outra forma, uma
multinacional do Primeiro Mundo, que extrai quilos e quilos de ouro por dia,
instalada em uma cidade brasileira com alto percentual de desempregados, sem
dúvida, desperta um sentimento de inconformismo entre aqueles que, num passado
recente, se valiam do aluvião do Morro do Ouro em suas necessidades mais agudas.”
A versão do
episódio por parte dos garimpeiros só viria a público em 2008, através do filme
documentário Ouro de Sangue, na voz de Éris Ribeiro Pereira, quando afirma que seu primo Sandro foi capturado e espancado pelos seguranças, que depois o mataram
com um tiro nas costas. Éris conseguiu escapar, mas levou um tiro no pé no
momento em que saltava o barranco. O segurança da RPM que matou Sandro foi
julgado e condenado a um ano de prisão, em regime semiaberto.
Poder, Lei e
Justiça: em qual deles você acredita, caro leitor? Continue conosco no próximo
capítulo.
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