Um fato notável, que se constata a partir da documentação relativa à história do garimpo nas décadas de 1980 e 1990, é que, embora tenha havido forte resistência dos garimpeiros ao poder da mineradora RPM, nunca houve uma liderança a conduzir o movimento.
Num breve período, entre 1987 e 1989, elementos que
conduziam a Cooperativa dos Garimpeiros pareciam despontar como lideranças ao
se colocarem à frente de negociações com o governo municipal e o DNPM. Como a
grande massa de garimpeiros era analfabeta ou, pelo menos, semi-analfabeta,
algumas pessoas mais esclarecidas, donos de garimpo, como Dr. Avelino Couto,
José Osório, Rubens Lisboa e Joanil Lima negociaram com a Prefeitura e o DNPM
um programa de despoluição e desassoreamento dos córregos onde ocorria o
garimpo. Foi um curto período de articulação da resistência, logo surpreendida
pela primeira decisão de fechar o garimpo, determinada pelo Secretário de Estado
do Meio Ambiente e Presidente do COPAM, José Ivo Gomes, em outubro de 1989.
Sem
liderança, a resistência dos garimpeiros prosseguiu espontânea e fragmentada.
Em 1995, apareceu uma nota no jornal O
Movimento intitulada “Utilidade pública e preservação ambiental”, dando
conta da criação, em 11 de junho de 1995, do Sindicato dos Garimpeiros de
Paracatu. Não há registro de ações desse Sindicato à frente do movimento dos
garimpeiros e do mesmo modo que surgiu ele desapareceu, na obscuridade.
A posição dos
setores dominantes da sociedade paracatuense em relação ao domínio da RPM sobre
o tecido social pode ser melhor esclarecida pela análise do fato ocorrido
poucos meses antes de um acontecimento trágico em meados de 1998. Em
28 de novembro de 1997, a
Câmara Legislativa concedeu o título de Cidadão Honorário de Paracatu ao
gerente geral da mineradora, em sessão solene seguida de coquetel, onde estava
presente a nata da sociedade local. Esse título foi iniciativa de um vereador
que, em 1991, havia atuado como advogado de defesa de garimpeiros presos e
torturados a mando da mineradora, como também atuou na denúncia de agressões
ambientais que estavam sofrendo as populações dos bairros periféricos da mina,
por causa das explosões na área de lavra. Trecho do seu discurso de
justificativa da concessão do título ao gerente geral da RPM mostra a relação
da classe social abastada diante do novo poder que se instalou e se estendia
numa rede cada vez mais ampla: “Ainda bem
que podemos contar com tua pessoa no contexto econômico de Paracatu, que além
de dirigir a empresa, tem em sua conduta a sensibilidade social para ajudar
humanitariamente nossa comunidade (...)se irmanando com todos seus cidadãos da
vestuta Paracatu do Príncipe, na consecução do bem e amparo aos menos
favorecidos” (O Movimento, Ed.
145, dez/1997b, p. 8).
Saudada na
“casa do povo” por um expoente da classe dominante local, a empresa recebeu
desta um aval para intensificar a repressão aos garimpeiros. A despeito de
reprimir brutalmente a classe mais pobre da cidade e se orientar apenas pelos
ditames do capital, a mineradora conseguia produzir um discurso exatamente
oposto, de conduta humanitária com objetivo de amparar os menos favorecidos.
Esse discurso ainda hoje continua produzindo as verdades do poder dominante e
legitimando suas ações.
O
acontecimento trágico, a que nos referimos anteriormente, no violento conflito
entre os garimpeiros e a RPM, foi a agressão armada a três garimpeiros,
resultando na morte de um deles e ferimentos nos outros dois. O aspecto
deplorável deste fato é que a imprensa só o noticiou com uma nota de
esclarecimento da empresa. Não foi apresentada matéria jornalística,
investigativa, que deixasse claro para a sociedade o que tinha ocorrido: o
discurso da empresa calou todas as vozes.
A nota que a RPM
divulgou à imprensa, entre outras coisas, dizia que na madrugada de 27 de junho
de 1998, quatro vigilantes surpreenderam os garimpeiros no canal de rejeito e
que estes reagiram com paus e pedras. Afirma a nota:
O saldo desta invasão é lamentável. Os funcionários da
RPM saíram feridos, sendo que um deles em estado grave e, segundo consta, três
invasores também foram feridos. Um destes veio a falecer após ser submetido a
uma cirurgia. Foi confirmado que todo atendimento de primeiros socorros aos
feridos, sejam funcionários da empresa ou invasores, foi prestado pela equipe
do serviço médico da própria RPM, sendo conduzidos, a seguir, para hospitais da
cidade na ambulância da empresa. (...) Infelizmente, mesmo após várias
detenções e prisões efetuadas, os invasores vêm se organizando e constituindo
quadrilhas cada vez mais perigosas e violentas.
Observa-se,
na nota, que a mineradora se colocava como vítima da violência e ainda assim
prestou todos os serviços médicos no socorro aos garimpeiros, aos quais
classificava como bandidos constituídos em quadrilhas perigosas e violentas.
A versão dos
garimpeiros nunca apareceu na imprensa de Paracatu; na época, sequer foram
divulgados os nomes dos atingidos, tratados assim como “não-pessoas”. Os três
garimpeiros eram irmãos, residentes na localidade Machadinho, hoje reconhecida
como comunidade quilombola. Nasceram naquele local, como descendentes de
escravos que se fixaram próximo ao Morro do Ouro, cujo modo de subsistência
sempre incluiu a faiscação naquela área, até que a mineradora se instalou ali.
Seus nomes: Luis Oliveira Lopes, que morreu logo após chegar ao hospital, José
Oliveira Lopes, que foi atingido na perna e ficou paralítico, vindo a falecer dois
anos depois em consequência dos ferimentos, e Evandro Oliveira Lopes, que foi
atingido no braço e ainda está vivo, embora com o braço inutilizável para o
trabalho.
A versão dos
garimpeiros somente surgiria dez anos depois no documentário Ouro de Sangue, através
do sobrevivente Evandro Oliveira Lopes. Ele afirma que:
Teve um telefonema que “os Canela tava lá”. Eles foram
pra estrada pra esperar nós. Aí, nós passou pra dentro, eles deixou nós passar,
só que nós chegou lá, na beirada lá, nós viu que não dava pra trabalhar. Tinha
vigilância pra todo lado lá. Aí meu irmão falou assim: vamos voltar pra trás!
Nós já tava saindo de dentro da firma, pegou material, pegou nada, aí o que nós
recebeu foi só os tiros. Aí, eles falou assim: “É os Canela, vamos matar agora”.
Quando eu cheguei a pegar meu irmão assim, aí só vi meu braço... desceu o
braço. Levei só um tiro no braço, hoje em dia ele é torto (...) não aguento
pegar um peso. O outro tomou um tiro na perna, ficou inválido, andando aí de
cadeira de rodas muito tempo, ficou na cadeira de rodas até morrer.
Orlando Oliveira Lopes, sobrevivente da chacina dos Irmãos Canela, presta depoimento ao filme documentário Ouro de Sangue, em 2008. |
Bala dundum é
o nome do projétil concebido para se expandir e se fragmentar dentro do alvo
atingido, provocando um ferimento extenso e dores lancinantes. Por motivos
humanitários, a Convenção de Genebra de 1980, da qual o Brasil é signatário, através
do seu Protocolo I sobre Fragmentos Não-Detectáveis, proibiu o uso de armas de
fogo que podem ser consideradas como excessivamente lesivas ou geradoras de
efeitos indiscriminados, como é o caso da bala dundum
As depoentes,
ao descreverem o episódio, assim se expressam:
Aparecida: (...) Um morreu na hora, o outro depois de algum
tempo...
Ana: A perna esbagaçou tudo o osso, o outro destruiu a
barriga, virou carne moída...
Aparecida: Porque eles usou aquela bala que explode, ela
destruiu a perna dele.
Márcio: É? Aquela bala que explode dentro da pessoa?
Ana: É, aquela que eles usou pra matar...
Aparecida: Aí, deu um tempo, depois ele acabou morrendo devido
ao problema. A gente não sabe direito como é que foi esse processo, eu mesma
não sei te dar informação mais precisa, não.
Ana: Como é que eu posso agradecer a essa RPM?
Aparecida: Nada! (...)
Ana: Pois é, ele morreu por causa disso. Eu não falo bem
dela nem lá dentro do escritório é que eu não falo.
Márcio: Porque esse tipo de munição é proibido.
Aparecida: Foi o que na época as pessoas, todo mundo falou que
era proibido, não podia.
Ana: Todos dois, pai de família.
Aparecida: Se não fosse esse tipo de bala eles não tinham
morrido.
Ana: Todos dois novo, pai de família, largou a família
tudo aí.
(Entrevista realizada pelo Autor em 04/01/2012)
Ana Lopes de Moais, conhecida como Dona Tuta, mãe dos Irmãos Canela, nascida e criada no Machadinho. |
Não obstante
esse crime repugnante, afora o boletim de ocorrência, que é obrigatório num
caso destes, não houve investigação policial e muito menos processo criminal.
Houve um efeito silenciador e conivente. José Luis Oliveira Lopes contratou
advogado, inclusive porque ficara paralítico e queria reparação; entretanto,
seu advogado não deu surgimento a um processo criminal; sem condições para se
tratar, os ferimentos recebidos levaram o garimpeiro à morte, sem reparação.
Você, caro
leitor, certamente deve estar se perguntando: - Como reagiram as autoridades
públicas? Como reagiu a sociedade paracatuense? Como reagiu cada um de nós
diante dos crimes torpes praticados pela mineradora estrangeira contra nossos
concidadãos? Vejamos no próximo capítulo.
Palavras-chave: Paracatu; arsênio; ouro; meio ambiente; garimpo; Garimpo em Paracatu