Sentado à mesa do meu escritório, vejo pela janela à frente um casal de joão-de-barro na faina de construir sua morada na forquilha de um poste de luz. (Você já reparou? O joão-de-barro descobriu que as árvores não são assim tão seguras para uma casa, elas estão sendo derrubadas, eliminadas, enquanto que os postes disseminam-se rapidamente, respeitados, garantidos por lei).
Há muitos dias acompanho a evolução do penoso trabalho, mas o esforço do casal é admirável, de maneira que imperceptivelmente as paredes se arrumam e se fecham, num acabamento perfeito. Bem alojada na madeira, como toda casa de joão-de-barro esta é sólida, sem enfeites, mas acolhedora, com a entrada oval aberta voltada para o norte, que impede a entrada de vento e permite que o sol de inverno possa penetrar no seu interior.
Durante a maior parte do dia a casinha até parece desabitada, não sei se o casal lá se esconde cuidando dos ovos ou se anda por aí procurando alimento. Porém, nas primeiras horas da manhã e naquelas que antecedem o anoitecer eles fazem bastante barulho, com um gorjeio semelhante a uma gargalhada e um sobe e desce constante para trazer o barro com que completam a residência. Nesse movimento, quase sempre um deles fica vigiando a casa, e quando chega o parceiro, ou parceira, estufa o peito e, nessa hora, seu canto varia para uma espécie de ameaça ou desafio a qualquer encrenqueiro que queira invadir aquele espaço sagrado destinado a abrigar a prole.
Enquanto minha mente vagueia pensando nos milhões de pessoas que não têm um pedaço de chão para construir seu abrigo, constato que a Natureza propiciou uma alternativa a esse pequeno pássaro - usar os postes, já que as árvores estão desaparecendo –, mas talvez jamais ensine aos seres humanos o sentido da verdadeira justiça.
Poder trabalhar sob a inspiração deste casal de joão-de-barro é, para mim, um privilégio que bastaria para afastar qualquer desânimo. Ademais, meu local de trabalho é pródigo de bênçãos: através da janela às minhas costas vejo três corujinhas, frutos de uma ninhada que foi chocada no telhado do escritório. Eu não tinha notado qualquer indício, mas numa clara manhã de março encontrei as três pousadas no muro da casa, como se tivessem saído do nada.
Converso com elas, guardando uma certa distância para que não se assustem. Elas me encaram fixamente, silenciosamente, grandes olhos arregalados, tímidas e concentradas como se esperassem a minha presença. Durante todo o dia as corujinhas ficam por perto, escolhem algum lugar mais alto para dali fazerem a vigilância e, quem sabe, capturar algum inseto, ratos ou lagartixas.
Numa pequena nesga que sobrou entre as construções, plantei uma figueira. Cuido dela como se cuida de algo precioso, e ela parece compreender o meu gesto, retribuindo-me com a produção dos figos mais belos e doces que já comi. Adoro figo maduro, quando colhido no pé, a casca roxa e fina estufada, quase rompendo. Eu os como ali mesmo, de manhã, ao pé da figueira, quando ainda estão frescos e orvalhados. Em cada safra, colho uma quantidade para fazer doce, que é distribuído aos amigos, pois para eles não existe doce de figo melhor que o meu.
Uma parte do que é produzido fica para os passarinhos. Não sei como eles descobriram minha figueira, apertada entre muros e paredes, mas é uma leva contínua de sanhaços, sabiás, bem-te-vis, garrinchinhas e, acredite, até um tucano andou por aqui. Por que será que eles estão vindo para a cidade em busca de comida? Não tem mais comida no cerrado? Contudo, minha figueira é generosa, entrega placidamente os seus frutos e a presença desses pássaros contamina de alegria o meu dia.
Nem tudo, porém, está a meu gosto, pois no beiral do telhado instalaram-se alguns pombos, e seus ninhos se espalham cheios de fezes e, suponho, de piolhos. Nunca gostei desses pombos domésticos! Pombos são associados com a paz: a pomba da paz. De onde as pessoas tiraram isto? Para mim, não passam de espécie invasora trazida pelos europeus, transmissora de várias doenças! Não fico em paz com a presença deles e, cá do meu canto, torço para que as corujinhas cresçam e dêem cabo desses pombos que infestam meu telhado e se espalham tomando conta dos telhados de Paracatu.
Esqueço os pombos e relanceio o olhar para um pedaço de céu azul e limpo. Na suavidade da manhã de inverno, enquanto o delicado canto dos pássaros me envolve e acaricia, retomo o trabalho, de bem com a vida.
Este texto foi publicado no jornal O Movimento com o título " Os Pássaros - De bem com a vida", edição 357, de 11 a 31 de agosto de 2009.
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