22/11/2015 02h00
Antonio Prata[i]
Outro dia um amigo me ligou pra reclamar da vida.
Estava trabalhando tanto, ele me disse, que não fazia a menor ideia do que se
passava no mundo: há meses não lia jornal, não via TV, não ouvia rádio. Queria
um consolo, mas recebeu a minha inveja: "Você não tem ideia da sua sorte!
Acho que, desde que a gente nasceu, não teve época melhor pra não saber o que
se passa" –e, veja bem, a gente nasceu numa ditadura.
No final de uma ditadura, é verdade. O governo dos
militares chegava ao fim com a vergonhosa anistia, a esquerda chegava à praia
com o desavergonhado "desbunde". O tempo ainda estava fechado, mas a
previsão era de sol, adiante. Gilberto Gil cantava "Não se incomode/ O que
a gente pode, pode/ O que a gente não pode explodirá" e
"explodirá" rimava com "poderá" e "brilhará", não
com homens-bomba, pautas-bomba, aviões derrubados, chacinas e barragens
arrebentadas.
Vejo na TV a mãe do menino de dez anos assassinado
com um tiro na cabeça, no Alemão, revoltada com o inquérito da polícia,
inocentando os PMs. Vejo aqueles índios mineiros, mal ajambrados, macambúzios,
sentados num trilho de trem, à beira do ex-rio Doce. Leio a carta do viúvo aos
terroristas que mataram sua mulher, em Paris, deixando-o com o filho de um ano
e meio. "Cara, que sorte a sua não ler jornal!", digo ao meu amigo.
"Eu ontem chorei ouvindo a CBN. Que tempos são esses em que a gente chora
com a CBN?"
Serão os tempos? Será que o mundo piorou ou sempre
foi assim e eu é que fiquei adulto? Num esforço de otimismo –veja a que ponto
chegamos–, penso na Segunda Guerra. Lembro do depoimento de um sobrevivente do
Holocausto, no documentário "Shoa". Com outros prisioneiros do gueto
de Varsóvia, o homem criou um esquema elaborado e perigoso para passar cartas
para fora da área em que estavam confinados. Por anos, essas cartas foram
enviadas a governos, instituições e pessoas importantes de vários países. O
homem tinha certeza de que, uma vez que se soubesse do que acontecia ali,
alguém tomaria uma providência. Em seu depoimento, o horror nazista parecia
chocá-lo menos do que o descaso geral.
Lembro do judeu polonês ao ouvir e fazer tantas
vezes a pergunta, depois dos atentados de Paris: como pode um ser humano ter
tamanho descaso pela vida de outros seres humanos a ponto de metralhá-los
indiscriminadamente? Como pode o mundo saber o que Hitler fazia com os judeus,
por anos, sem tomar uma atitude?
Pois, na última quinta-feira, tive a resposta. Não
uma resposta sociológica, histórica, geopolítica: uma resposta íntima, pessoal.
Num pé de página, no jornal, li: "Atentado terrorista mata 45 na
Nigéria" e não senti nada. Ou quase nada. Pensei, "puxa, que
triste", mas não chorei. Só depois é que veio o incômodo, não como um nó
na garganta, mas como um embrulho no estômago: eu sou o destinatário das cartas
de Varsóvia. Todo dia elas me chegam via e-mail, Facebook, Twitter, vindas dos
guetos do Alemão, da Síria, de Barueri, de Lagos, do Pará, do Afeganistão.
Algumas vezes dou um share, noutras mando um casaco, outro dia fui até o Brás,
comprei umas esfirras de um refugiado, me senti bem por semanas. Na maior parte
do tempo, contudo, rolo rápido a tela pra cima, fingindo não ter nada a ver com
essa lama, e vou cuidar dos meus assuntos.
Obtido em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2015/11/1709412-o-gueto-de-mariana.shtml?cmpid=newsfolha
. Acesso em: 22/11/2015.
[i] ANTONIO PRATA É escritor. Publicou livros de
contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora
34). Escreve aos domingos.
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