“Ninguém está tão errado como
aquele que sabe todas as soluções”.
Chuang Tzu
O mundo contemporâneo é marcado pela racionalidade. Entretanto, estamos vivendo uma crise de sentido ético, crise de valores e de significado, a falta de um modelo bem definido que dê sentido e direção à busca do que seja correto fazer e do que seja errado praticar.
A evolução do conhecimento humano, especialmente das novas teorias físicas, trouxe mudanças na forma do homem ver, entender e se relacionar com o mundo. As referências tradicionais desapareceram, assim também os fundamentos da ética e da moral. Daí, a necessidade de restabelecer o sentido da nossa vida e da forma como nos relacionamos com tudo que nos cerca, para que possamos dar significado às coisas e à nossa própria existência.
Diante disso, o que significa felicidade? Exatamente aí reside a questão: devido à crise de sentido que vivemos não existe, na contemporaneidade, um modelo filosófico ou ético que nos dê o significado preciso de felicidade e de como alcançá-la. Certamente por isto, as pessoas reflexivas têm procurado nos sistemas filosóficos e/ou religiosos mais antigos o conhecimento que possa ajudá-las a orientar, compreender, dar significado e justificar suas ações no mundo.
O sistema capitalista tem nos levado a um modo de vida em que ser feliz é uma obrigação. No contrapasso desse modelo, as pessoas estão sendo empurradas para a depressão. No livro “A Euforia Perpétua”, o escritor francês Pascal Bruckner afirma que "A depressão é o mal de uma sociedade que decidiu ser feliz a todo preço”.
Uma perspectiva muito distinta do modelo filosófico/religioso cristão, que é a base da nossa cultura, nos é apresentado pelo taoísmo, através de Chuang Tzu, considerado o mais espiritual dos filósofos chineses. Foi ele o grande divulgador dos ensinamentos de Lao Tzu, fundador do taoísmo, e seus escritos revelam excepcional sabedoria, grande senso de sátira e penetrante capacidade de análise do ser, sendo, por isto, de caráter atemporal.
Não obstante meus escassos conhecimentos desta doutrina, achei oportuno apresentar algumas referências de Chuang Tzu acerca da felicidade, abordadas no livro “A Via de Chuang Tzu”, de Thomas Merton. Fica claro, desde já, que não é uma defesa da filosofia taoísta, uma pretensão muita acima dos meus limitados conhecimentos. Por outro lado, as colocações que serão feitas são interessantes porque podem dar o vislumbre de um ponto de vista em extrema oposição às nossas tradicionais concepções e assim provocarem questionamentos mais profundos das nossas crenças e modelos de vida.
Chuang Tzu acredita que os conceitos felicidade, virtude, justiça e outros são ambíguos desde o início, pois se colocam no mundo dos objetos. Desde que são tratados como objetos a serem atingidos, estes valores conduzem à desilusão e à alienação. Portanto, Chuang Tzu se identifica com o paradoxo de Lao Tzu: “Quando todo mundo reconhece o bem, enquanto bem, ele se torna o mal, porque se torna algo que não se tem, e que temos sempre de procurar, até que, na verdade, ele se torna inacessível".
Chuang Tzu nega que a felicidade possa ser encontrada pelo hedonismo (busca do prazer) ou pelo utilitarismo (busca do lucro). A vida de riquezas, de ambição, de prazeres, é, de fato, uma intolerável servidão, na qual vivemos para o que está sempre fora do nosso alcance, ansiando pela sobrevivência futura, e incapazes de viver o presente. Ele também critica o homem público heróico e pronto a se sacrificar, o “Homem Superior”, virtuoso. Para ele, o herói da virtude e do dever, em última análise, encontra-se nas mesmas ambigüidades que o hedonista ou o utilitarista. Por quê? É que ele procura atingir o bem como objetivo. Envolve-se numa campanha deliberada e autoconsciente, a fim de cumprir com o seu dever, acreditando que isto é o certo, e, por conseguinte, o que produz a felicidade. Ele vê a felicidade e o bem como algo a ser atingido e, dessa maneira, coloca-os fora de si mesmo, no mundo dos objetos. Assim procedendo, deixa-se envolver por uma divisão da qual não há escapatória: de um lado, o presente, no qual ele ainda não está de posse do que procura e, de outro, o futuro, no qual ele acredita que terá o que desejar, sua fonte de ilusão.
Procurando o bem fora de nós mesmos, como algo a ser adquirido, somos forçados à necessidade de discutir, estudar, entender e analisar a natureza do bem e nos envolvemos em abstrações e na confusão de opiniões divergentes. Quanto mais o bem for analisado objetivamente, quanto mais for ele tratado como algo a ser atingido por técnicas virtuosas especiais, menos real e mais inacessível se torna. E, na medida que o fim vai se tornando mais remoto e mais dificultoso, torna-se mais rebuscado e complexo, até que, finalmente, o simples estudo do meio se torna tão problemático que todos os esforços devem concentrar-se nesse meio e, então, nos esquecemos do fim. Isto nada mais é do que o desespero organizado: o bem pregado e teorizado pelo moralista torna-se, assim, um mal, e isso levado a um extremo cada vez maior, porque a busca desenfreada do bem desvia-o do bem verdadeiro, que já possuímos dentro de nós mesmos, e que, agora, abandonamos ou ignoramos.
As doutrinas judaico-cristãs afirmam que o homem traz em si o pecado, o pecado original, e que ele precisa purificar-se através da prática consciente do bem. O taoísmo, ao contrário, afirma que, pelo próprio fato da nossa existência, somos dotados do bem. A diretriz do Tao é começarmos com este bem, mas ao invés de cultivá-lo autoconscientemente (pois ele desaparece quando para ele olhamos e torna-se intocável, quando tentamos pegá-lo), vamos progredindo calmamente na humildade de uma vida simples, corriqueira. É mais uma questão de acreditar no bem, do que de contemplá-lo como o fruto do nosso esforço pessoal.
Portanto, Chuang Tzu não propõe a acumulação da virtude e do mérito, mas o não-fazer ou a inação, que não almeja resultados, e não se preocupa com planos conscientemente estabelecidos, nem com tentativas deliberadamente organizadas: "A minha maior felicidade consiste precisamente em não fazer nada que seja calculado a fim de obter a felicidade... A perfeita alegria é não se estar alegre... se você me perguntar "o que deve ser feito", e "o que não deve ser feito", na terra, para produzir a felicidade, eu responderia que estas perguntas não possuem uma resposta" (fixa e predeterminada) que se adapte a cada caso. Se estamos em harmonia com o Tao - o Tao cósmico, o "Grande Tao" - a resposta tornar-se-á clara, quando o tempo começar a atuar, pois, aí, não agiremos de acordo com uma maneira de agir humana e autoconsciente, mas segundo a maneira espontânea e divina do wu wei (não-agir), que é a maneira de agir do próprio Tao, e, portanto, a fonte de todo o bem.
“Tudo de que o peixe necessita
É de perder-se na água.
Tudo de que o homem necessita
É de perder-se no Tao”.
Embora o ensinamento de Chuang Tzu, de que "você nunca encontrará a felicidade, a não ser quando cessar de procurá-la", seja paradoxal, ele não é pessimista. Ele não prega o afastamento de uma existência intensa, ativa, humana, para a inércia e o quietismo. Está apenas afirmando que a felicidade pode ser encontrada, mas apenas pela não-procura e pela inação. Pode ser encontrada, mas não por meio de um sistema ou de um programa. Um programa ou um sistema tendem a colocar a felicidade em uma só espécie de ação e tendem a procurá-la apenas naquela situação dada. Mas a felicidade e a liberdade que Chuang Tzu viu no Tao é encontrada em toda parte, pois o Tao está em toda parte.
Fonte de Pesquisa: MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002.
Minhas Reflexões:
1. Imerso numa racionalidade azeda e corrosiva, preocupamo-nos com a busca da felicidade, fazendo planos, estipulando metas, com a vista presa ao futuro. Mas a felicidade parece estar na ponta do arco-íris, quando ansiosos caminhamos em direção a ela, percebendo que ela se afasta, inalcançável.
2. No entanto, somos felizes quando vivemos o presente, despreocupados e livres, e não procuramos transformar a vida em uma meta. A vida não é uma meta!
3.Há um ensinamento de Jesus que, aparentemente, se confronta diretamente com o taoísmo; “Buscai e achareis”. Digo aparentemente porque, para mim, o significado moral desta máxima é: buscai a luz que vos clareie o caminho e a achareis. O significado material é, obviamente, outro.
4. Porém, há dois outros ensinamentos evangélicos que, em relação a este, são aparentemente paradoxais, mas, no meu entender, são os paradoxos que encerram as mais importantes lições. O Evangelho ensina: “Digo-vos, em verdade, que, se não vos converterdes e tornardes quais crianças, não entrareis no reino dos céus” (Mateus, cap. XVIII). O outro, na poética passagem evangélica “Observai os pássaros no céu”, em que Jesus afirma: “Assim, pois, não vos ponhais inquietos pelo dia de amanhã, porquanto o amanhã cuidará de si”. Ora, se para entrar no reino dos céus (suprema felicidade) é preciso se converter e tornar criança, isto significa ser espontâneo, não premeditado, não inquieto pelo dia de amanhã, despreocupado de planos conscientemente estabelecidos e não se afainar numa busca deliberadamente organizada da felicidade, exatamente conforme ensina Chuang Tzu.
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