Viomundo — Na última
sexta-feira, Marina lançou o seu programa de governo, que previa o
reconhecimento da união homoafetiva e a criminalização da homofobia. Bastou o
pastor Malafaia tuitar quatro frases para ela voltar atrás. O que achou dessa
postura? É cristão não criminalizar a homofobia, que frequentemente provoca
assassinatos?
Leonardo Boff — Está ficando cada
vez mais claro que Marina tem um projeto pessoal de ser presidente, custe o que
custar. Numa ocasião, ela chegou a declarar que um dos objetivos desta eleição
é tirar o PT do poder, o que faz supor mágoas não digeridas contra o PT que
ajudou a fundar.
O Malafaia, líder da
Igreja Assembleia de Deus à qual Marina pertence, é o seu Papa. O Papa falou,
ela, fundamentalisticamente obedece, pois vê nisso a vontade de Deus. E, aí,
muda de opinião. Creio que não o faz por oportunismo político, mas por
obediência à autoridade religiosa, o que acho, no regime democrático,
injustificável.
Um presidente deve
obediência à Constituição e ao povo que a elegeu e não a uma autoridade
exterior à sociedade.
Viomundo — Qual o risco
para a democracia brasileira de alguém na presidência estar submissa a visões
tão retrógradas em pleno século XXI, ignorando os avanços, as modernidades?
Leonardo Boff — Um fundamentalista
é um dos atores políticos menos indicado para exercer o cargo da
responsabilidade de um presidente. Este deve tomar decisões dentro dos
parâmetros constitucionais, da democracia e de um estado laico e pluralista.
Este tolera todas as expressões religiosas, não opta por nenhuma, embora
reconheça o valor delas para a qualidade ética e espiritual da vida em
sociedade. Se um presidente obedece mais aos preceitos de sua religião do
que aos da Constituição, fere a democracia e entra em conflito permanente com
outros até de sua base de sustentação, pois os preceitos de uma religião
particular não podem prevalecer sobre a totalidade da sociedade. A seguir
estritamente nesta linha, pode acontecer um impeachment à Marina, por
inabilidade de coordenar as tensões políticas e gerenciar conflitos sempre
presentes em sociedades abertas.
Viomundo — Lá atrás
Marina Silva esteve ligada à Teologia da Libertação. Atualmente, é da
Assembleia de Deus. O que o senhor diria dessa trajetória religiosa? O que
representa essa guinada para o conservadorismo exacerbado?
Leonardo Boff – Respeito a opção
religiosa de Marina bem como de qualquer pessoa. Eu a conheço do Acre e ela
participava dos cursos que meu irmão teólogo Frei Clodovis (trabalhava 6 meses
na PUC do Rio e 6 meses na igreja do Acre) e eu dávamos sobre Fé e Política e
sobre Teologia da Libertação.
Aqui se falava da opção
pelos pobres contra a pobreza, a urgência de se pensar e criar um outro tipo de
sociedade e de país, cujos principais protagonistas seriam as grandes maiorias
pobres junto com seus aliados, vindos de outras classes sociais. Marina era uma
liderança reconhecida e amada por toda a Igreja.
Depois, ao deixar o Acre,
por razões pessoais, converteu-se à Igreja Assembleia de Deus. Esta se
caracteriza por um cristianismo fundamentalista, pietista e afastado das causas
da pobreza e da opressão do povo. Sua pregação é a Bíblia, preferentemente o
Antigo Testamento, com uma leitura totalmente descontextualizada daquele tempo
e do nosso tempo. Como fundamentalista é uma leitura literalista, no estilo dos
muçulmanos.
Politicamente tem
consequências graves: Marina pôs o foco no pietismo e no fundamentalismo, na
vida espiritual descolada da história presente e quase não fala mais da opção
pelos pobres e da libertação. Pelo menos não é este o foco de seu
discurso. A libertação para ela é espiritual, do pecado e das perversões
do mundo. Com esse pensamento é fácil ser capturada pelo sistema vigente de
mercado, da macroeconomia neoliberal e especulativa. Isso é inegável, pois
seus assessores são desse campo: a herdeira do Banco Itaú Maria Alice (Neca),
Guilherme Leal da Natura e o economista neoliberal Eduardo Gianetti da Fonseca.
Os pobres perderam uma aliada e os opulentos ganharam uma legitimadora.
E eu que em 2010 sonhava
com uma representante dos povos da floresta, dos caboclos, dos ribeirinhos, dos
indígenas, dos peões vivendo em situação análoga à escravidão, dos operários
explorados das grandes fábricas, dos invisíveis, alguém que viria dos fundos da
maior floresta úmida do mundo, a Amazônia, chegar a ser presidente de um dos
maiores países do mundo, o Brasil?! Esse sonho foi uma ilusão que faz doer até
os dias de hoje. Pelo menos vale como um sonho que nunca morre!
Viomundo — O
programa de
Marina prevê autonomia ao Banco Central. O que acha dessa medida?
Leonardo Boff — Eu me pergunto,
autonomia de quem e para quem? Acho uma falta total de brasilidade.
Significa renunciar à soberania monetária do país e entregá-la ao jogo do
mercado, dos bancos e do sistema financeiro capitalista nacional e
transnacional. Um presidente/a é eleito para governar seu povo e um dos
instrumentos principais é o controle monetário que assim lhe é subtraído. Isso
é absolutamente antidemocrático e comporta submissão à tirania das finanças que
são cada vez mais vorazes, pondo países inteiros à falência como é o caso da
Grécia, da Espanha, da Itália, de Portugal e outros.
Viomundo — Essa medida
expressa a influência de Neca Setúbal, herdeira do Itaú, no seu futuro governo?
Leonardo Boff — Quem controla a
economia controla o país, ainda mais que vivemos numa sociedade de “Grande
Transformação” denunciada pelo economista húngaro-americano Karl Polaniy ainda
em 1944 quando, como diz, passamos de uma sociedade com mercado para uma
sociedade só de mercado. Então tudo vira mercadoria, inclusive as coisas mais
sagradas como água, alimentos, órgãos humanos.
A forma como o capital se
impõe é manter sob seu controle os Bancos Centrais dos países. A partir
desse controle, estabelecem os níveis dos juros, a meta da inflação, a
flutuação do dólar e a porcentagem do superávit primário (aquela quantia tirada
dos impostos e reservada para pagar os rentistas, aqueles que emprestaram
dinheiro ao governo).
Os bancos jogam um papel
decisivo, pois é através deles que se fazem os repasses dos empréstimos ao
governo e se cobram juros pelos serviços. Quanto maior for o superávit primário
a alíquota Selic mais lucram. Pode ser que a citada Neca Setúbal tenha tido
influência para que a candidata Marina acreditasse neste receituário, velho,
antipopular, danoso para as grandes maiorias, mas altamente benéfico para o
sistema macroeconômico vigente.
Viomundo — As avaliações feitas até agora mostram que o programa econômico
de Marina é o mesmo de Aécio Neves, candidato do PSDB à Presidência. São
neoliberais. O que representaria para o Brasil o retorno a esse modelo? O
senhor acha que, se eleita, o governo Marina teria conotações neoliberais?
Leonardo Boff — Marina
acolheu plenamente o receituário neoliberal. Ela o diz com certo orgulho
inconsciente, sem dar-se conta do que isso realmente significa: mercado livre,
redução dos gastos públicos (menos médicos, menos professores, menos agentes
sociais etc), flutuação do dólar e contenção da inflação com a eventual alta de
juros.
Como consequência, arrocho
salarial, desemprego, fome nas famílias pobres, mortes evitáveis. É o pior que
nos poderia acontecer. Tudo isso vem sob o nome genérico de “austeridade
fiscal” ,que está afundando as economias da zona do Euro e não deram certo em
lugar nenhum do mundo, se olharmos a política econômica a partir da maioria da
população. Dão certo para os ricos que ficam cada vez mas ricos, como é o caso
dos EUA onde 1% da população ganha o equivalente ao que ganham 99% das pessoas.
Hoje os EUA são um dos países mais desiguais do mundo.
Viomundo – Foi
amplamente divulgado que Marina consulta a Bíblia antes de tomar decisões
complexas. Esta visão criacionista do mundo é compatível com um mundo laico?
Leonardo Boff — O que Marina
pratica é o fundamentalismo. Este é uma patologia de muitas religiões,
inclusive de grupos católicos. O fundamentalismo não é uma doutrina. É uma
maneira de entender a doutrina: a minha é a única verdadeira e as demais estão
erradas e como tais não têm direito nenhum.
Graças a Deus que isso
fica apenas no plano das ideias. Mas facilmente pode passar para o plano da
prática. E, aí, se vê evangélicos fundamentalistas invadirem centros de umbanda
ou do candomblé e destruírem tudo ou fazerem exorcismos e espalharem sal para
todo canto. E no Oriente Médio fazem-se guerras entre fundamentalistas de
tendências diferentes com grande eliminação de vidas humanas como o faz
atualmente o recém-criado Estado Islâmico. Este pratica limpeza étnica e mata
todo mundo de outras etnias ou crenças diferentes das dele.
Marina não chega a tanto.
Mas possui essa mentalidade teologicamente errônea e maléfica. No fundo, possui
um conceito fúnebre de Deus. Não é um Deus vivo que fala pela história e pelos
seres humanos, mas falou outrora, no passado, deixou um livro, como se ele nos
dispensasse de pensar, de buscar caminhos bons para todos.
O primeiro livro que Deus
escreveu são a criação e a natureza. Elas estão cheias de lições. Criou a inteligência
humana para captarmos as mensagens da natureza e inventarmos soluções para
nossos problemas.
A Bíblia não é um
receituário de soluções ou um feixe de verdades fixadas, mas uma fonte de
inspiração para decidirmos pelos melhores caminhos. Ela não foi feita para
encobrir a realidade, mas para iluminá-la. Se um fundamentalista seguisse ao pé
da letra o que está escrito no livro Levítico 20,13 cometeria um crime e iria
para a cadeia, pois aí se diz textualmente: “Se um homem dormir com
outro, como se fosse com mulher, ambos cometem grave perversidade e serão
punidos com a morte: são réus de morte”.
Viomundo — Marina fala em
governar com os melhores. É possível promover inclusão social, manter políticas
que favorecem os mais pobres com uma política econômica neoliberal?
Leonardo Boff — Marina parece que
não conhece a realidade social na qual há conflitos de interesses, diversidade
de opções políticas e ideológicas, algumas que se opõem completamente às
outras. Lendo o programa de governo do PSB de Marina parece que fazemos um
passeio ao jardim do Éden. Tudo é harmonioso, sem conflitos, tudo se ordena
para o bem do povo. Se entre os melhores estiver um político, para aceitar seu
convite, deverá abandonar seu partido e com isso, segundo a atual legislação,
perderia o mandato. Ela necessariamente, se quiser governar, deverá fazer
alianças, pois temos um presidencialismo de coalizão. Se fizer aliança com o
PMDB deverá engolir o Sarney, o Renan Calheiros e outros exorcizados por
Marina. Collor tentou governar com base parlamentar exígua e sofreu um impeachment.
Viomundo — Marina é
preparada para presidir um país tão complexo como o Brasil?
Leonardo Boff — Eu pessoalmente
estimo sua inteireza pessoal, sua visão espiritualista (abstraindo o
fundamentalismo), sua busca de ética em tudo o que faz. Estimo a pessoa,
mas questiono o ator político. Acho que não tem a inteligência política
para fazer as alianças certas. O presidente deve ser uma pessoa de síntese,
capaz de equilibrar os interesses e resolver conflitos para que não sejam
danosos e chegar a soluções de ganha-ganha. Para isso precisa-se de habilidade,
coisa que em Lula sobrava. Marina, por causa de seu fundamentalismo, não é uma
pessoa de síntese, mas antes de divisão.
Viomundo — A preservação
efetiva do meio ambiente é compatível com o capitalismo selvagem dos
neoliberais?
Leonardo Boff — Entre capitalismo
e ecologia há uma contradição direta e fundamental. O capitalismo quer acumular
o mais que pode sem qualquer consideração dos bens e serviços limitados da
Terra e da exploração das pessoas. Onde ele chega, cria duas injustiças: a
social, gerando muita pobreza de um lado e grande riqueza do outro; e uma
injustiça ecológica ao devastar ecossistemas e inteiras florestas úmidas.
Marina fala de sustentabilidade,
o que é correto. Mas deve ficar claro que a sustentabilidade só é possível a
partir de outro paradigma que inclui a sustentabilidade ambiental,
político-social, mental e integral (envolvendo nossa relação com as energias de
todo o universo).
Portanto, estamos diante
de uma nova relação para com a natureza e a Terra, onde as medidas
econômicas preconizadas por Marina contradizem esta visão. Temos que produzir,
sim, para atender demandas humanas, mas produzir respeitando os limites de cada
ecossistema, as leis da natureza e repondo aquilo que temos demasiadamente
retirado dela.
Marina quer a produção
sustentável, mas mantém a dominação do ser humano sobre a natureza. Este está
dentro da natureza, é parte dela e responsável por sua conservação e reprodução,
seja como valor em si mesmo, seja como matriz que atende nossas necessidades e
das futuras gerações.
Ocorre que atualmente o
sistema está destruindo as bases físico-químicas que sustentam a vida. Por
isso, ele é perigoso e pode nos levar a uma grande catástrofe. E com certeza os
que mais sofrerão, serão aqueles que sempre foram mais explorados e excluídos
do sistema. Esta injustiça histórica nós não podemos aceitar e repetir.