Blog do Professor Márcio

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quarta-feira, 17 de junho de 2009

Nenzinho

Acredito que, se um dia eu partir desta cidade, o tempo poderá me levar a esquecer de coisas que um dia considerei importantes, mas não apagará algumas imagens que ainda carrego dos primeiros anos de minha vida em Paracatu.

Tem tanta gente recém-chegada que talvez quase ninguém conheça ou se recorde de Tibiqüera, Benta, Agenor, Bam-bam-bam, Benedita Formigão, Dionísio Pilão e outras figuras, que não eram apenas indivíduos relegados ao anonimato, mas faziam parte da identidade coletiva e do imaginário popular.

Já agora o leitor estará se perguntando: - Você só se recorda deste tipo de pessoas, figuras deslocadas, gente doida, pessoas rejeitadas?

Claro que não, tenho muitas e todo tipo de lembranças, mas é para isto que a memória me serve: deixar gravadas aquelas que me recordam a humanidade, a dura luta, o frágil e instável equilíbrio que nos mantém presos à existência. Quanta humanidade naqueles doidos varridos, inofensivos, quando muito xingadores, blasfemadores, para os quais olhávamos não apenas com tolerância, mas com amor!

Outro dia, estava descendo a rua em frente da Igreja Presbiteriana e a lembrança me trouxe a imagem nítida de uma manhã dos tempos em que eu morava no sobradinho da Rua Alexandre Silva, perto da Igreja Matriz. Era outubro de 1987, eu estava passando naquele mesmo lugar quando vi Nenzinho pela primeira vez. Sua figura logo me chamou a atenção, ele ali caminhando bem no meio da rua - que naquela época não tinha asfalto e sinais de trânsito -, bem vestido, o infalível boné para fugir do sol escaldante.

Desde então, o tempo mudou todas as feições do lugar: alguém mandou cobrir de asfalto as pedras seculares (!), a casa dos Faria foi derrubada para dar passagem ao trânsito, vieram as placas e as faixas de sinalização..., mas o Nenzinho ali estava, bem mais velho, assim como eu, encarando com a mesma seriedade a sua função.

Função? Papel? Qual seria o papel do Nenzinho? Guarda de trânsito, zelador da rua? Sei lá o que ele pensa. Ele sobe e desce a mesma rua, como se fosse um motorista dirigindo sem carro, olha preocupado as faixas amarelas, que mandaram pintar sobre o asfalto, recentemente. O trânsito de hoje não é como o daquela época, que seguia na velocidade da vida pacata e respeitava o costume dos paracatuenses de andarem a pé no meio da rua. Por isso, Nenzinho caminha atento, dirigindo, orientando, sabendo o risco que corre.

Dei trégua ao meu afobamento, estacionei o carro e tirei a foto que está aqui ao lado.
Nenzinho sobe e desce. Ele pára, coça a cabeça, não ousa ultrapassar a faixa contínua. Não, ele respeita as demarcações. Lá vêm vindo os carros, eles passam velozes, são muitos, gente apressada. Nenzinho recua para a calçada, alguém grita da janela do carro: - Sai da rua, seu idiota! Olho o idiota que gritou e vejo que a placa do carro não é de Paracatu, é de cidade grande, intolerante.

Fiquei ali pensando com os meus botões. De uns anos para cá uma constatação me deixa apreensivo e, confesso, pesaroso: a cidade está crescendo explosivamente e os nossos doidos estão sumindo. Será que tem a ver com o caos provocado pelo excesso de veículos no centro da cidade? O que aconteceu com este lugar, que não produz mais aqueles doidos amigos, próximos, e que nos tocavam o coração com bondade? Doidos como o Nenzinho estão dando lugar aos loucos violentos, que se organizam em quadrilhas para roubar e matar, aos loucos do trânsito, loucos das drogas, loucos estupradores, loucos ameaçadores.

A gente não vive no passado, e o nosso presente é aquilo que fazemos dele. Por isto, Nenzinho insiste, ele sobe e desce a rua, caminha bem junto à faixa dupla central, sem pisar nela, contudo, sem ultrapassá-la, jamais. Sua insistência é a sua loucura, que resiste ao processo de desumanização feito em nome do progresso. Seu papel é nos lembrar que esta é a nossa cidade, que somos gente, pessoas frágeis, num instável e perigoso equilíbrio.

Crônica publicada no jornal "O Movimento", edição 353, Maio/Junho de 2009.

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