O texto que você verá em seguida, caro leitor, é de autoria do economista e educador César Augusto Dionísio. Tanto gostei do texto que lhe enviei uma mensagem pedindo-lhe autorização para publicá-lo em meu blog. Veja a sua resposta:
"Obrigadíssimo pelas palavras! Autorizo, sim, a publicação do texto a que se refere. A Editora pede apenas para citar a fonte. Sou grato pelos comentários que animam a continuar a difícil caminhada. Pode usar o texto em seu site. Aliás, parabéns pelo conteúdo. É tão raro encontrar fontes com abordagem séria e confiável na net. Parabéns por compor a net um campo mais reflexivo, sério e confiável."
“Nenhum a menos” (Not one less) é um filme imenso. Aprendi com o Professor Maurício Gonçalves que o filme é, por muitas vezes, maior que o cinema. Explico: enquanto o cinema fica lá como uma estrutura técnica, paredes e pipocas, levamos o filme para casa. O cinema não cabe no nosso bolso, mas o filme cabe no bolso de nossa cabeça.
É um filme sobre uma garota de 13 anos que assume as aulas numa paupérrima aldeia da China. Ela vem a substituir um professor que precisa se ausentar e é a única disponível para o cargo na região. Não sabe dar aula, está lá pelo dinheiro. Sabe ler e escrever. E só. Mas a incumbência, que lhe valeria alguns trocados, poderia render um pouco mais se ela, como professora, não deixasse nenhum aluno desistir das aulas. Assim, na próxima vez que o antigo professor aparecesse por lá não deveria ter nenhum aluno a menos, nenhum a menos, o que justifica o título.
Um ato fílmico interessantemente guardado nos olhos e memória de quem vê este bendito filme é que a guria corre, mas corre, mas corre atrás do carro do prefeito, atrás do ônibus, corre atrás do aluno, corre até a cidade grande. Tradução minha: ela corre porque é a única maneira de se conseguir o que se quer. Corre e mira; mira e corre.
Meu olhar de economista e educador deu boas gargalhadas, com direito a rever algumas vezes a cena em que o professor que irá deixar o cargo orienta a nova “professora”. Diz ele para que a menina não escreva na lousa letras muito miúdas, pois irá prejudicar a visão dos alunos, nem muito grandes, que é para economizar o giz. Escrevo, lembro e rio. O cuidado do educador e o cuidado do economista batendo do lado direito e esquerdo da minha face, pelas mãos da grande professora pequena, que tem olhos tão fechados, que nos relevam tudo.
E a professora tem um aluno difícil, que a desafia, responde, contesta e que não quer estudar. Num dia do filme da vida da professora, um aluno não comparece para a aula. Justamente o aluno mais difícil da jovem professora (que é mais jovem do que professora). Alguém de nós será que já topou com o menino do filme por aí? Mas eis que a professora decide, primeiramente, entender porque o aluno não compareceu na escola naquele dia. Descobre que ele foi trabalhar na cidade grande, pois os pais assim precisavam. Ela decide, então, ir até a cidade grande, desconhecida por ela, para buscar seu pupilo, ou seu pimpolho. É triste. Especialmente triste porque a ‘cidade grande’ é um inferno. Gente, muita gente num trânsito desordenado, violência, pobreza, sujeira, escuridão, os ricos e os pobres, misturados como água e óleo, e muita incoerência. Em resumo, a visão urbana do inferno. E aí pergunto-me e pergunto: porque temos a sensação de que precisamos ir até o inferno para buscar nossos alunos? Ou ainda: será que estamos dispostos a ir até o inferno por nossos alunos? A guria foi.
O filme é de 1999, vencedor do Festival de Veneza daquele ano. Mas nada mais atual. A China é, ao mesmo tempo, país de Primeiro e de Terceiro mundo. Digo isso de todos os países que tem gente rica e gente pobre numa mesma fronteira.
Karla Donetti Antunes me indicou o filme, que indico a todos. Depois de assistir e de me lembrar que a senhora Antunes não é professora, lembrei-me que agora ela é mãe e tudo se explica e justifica a recomendação.
Penso ainda que “Nenhum a menos” é um filme que está estampado nos jornais sempre que leio assim: “Número de professores diminui”, “Vestibulandos optam cada vez menos por Pedagogia”, “Evasão no curso de letras vem se acentuando a cada ano”, “Magistério não é opção entre jovens”, “Salário de professores não é atrativo para adolescentes”. “Nenhum a menos” é um sensível tapa na cara da nossa sociedade que quer construir educação sem educadores. Não dá.
Não é um filme sobre assassinato. Se você quer ver sangue, esqueça. O filme nos faz lembrar que lágrimas e suor são expressão muito melhor do que é ser um sujeito humano. Se bem que podemos entender o “Nenhum a menos” como um relato das tentativas de se assassinar a educação. Não é comédia. A não ser nos momentos em que nos pegamos rindo de nós mesmos. China ou Brasil. Adultos ou crianças. Filme ou realidade. Realidade ou falsa realidade. Afinal, onde é que mora mesmo essa tal realidade? Num filme sobre uma guria que se torna professora e que mergulha no desconhecido inferno para buscar uma alma, umazinha só, que se perdeu? Ser professor pelo dinheiro, pelo amor? Não importa. Recomendo que assistam à realidade fílmica de “Nenhum a menos” para tentar compreender a nossa.
César Augusto Dionísio é economista e professor. Contato: cesar.dionisio@unavision.com.br.
Este artigo foi publicado em JORNAL VIRTUAL GESTÃO EDUCACIONAL Ano 2 Nº 116 - 16/06/09
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