"Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre. Eu fui feliz para sempre na minha infância (...)"
José Eduardo Agualuza em "O vendedor de passados"
O quintal me parecia enorme. Bem junto à rua estava plantada a casa e, na outra extremidade, que terminava na meia encosta de um morro, havia algumas fruteiras plantadas por meu irmão mais velho, o Gil. Nós nos referíamos àquele local como “lá nas bananeiras”, porque ali se destacavam alguns pés de banana, que mal produziam, mas eram freqüentados nas horas do aperto das necessidades fisiológicas, apreciado então pelo sossego e isolamento. Entre a casa e as bananeiras havia uma horta, cuidada com muito carinho, pois era dali que vinham os legumes para acompanhar os pratos simples e cotidianos da refeição caseira.
Falando assim, parece pouco, mas havia outras coisas, algumas de breve existência, como uma olaria e uma pocilga, outras mais duradouras, como um muro de tijolos sobre o qual meu pai pretendera erguer uma nova casa, e duas bombas d’água manuais, geralmente acionadas pelas crianças como castigo por alguma travessura.
Jamais consegui dimensionar aquele quintal, assim também a casa, na escala real, pois na minha imaginação eles ocupavam quase o tamanho de meu pequeno mundo infantil. Meus pais eram rigorosos e minhas escapulidas para a rua eram vigiadas, às vezes proibidas, de maneira que casa e quintal se avantajaram sobre tudo o mais.
Sob o piso de tábua da casa havia um porão que servia para tudo: cortar e guardar a lenha, socar café e arroz no pilão de madeira, um poleiro e ninhos para as galinhas e até mesmo para a gente brincar de esconde-esconde.
Era ali que eu me escondia também de Deus, que do alto do céu vigiava as crianças travessas, sempre ameaçadas por Seus castigos terríveis.
A maioria das fruteiras nascia ao acaso, muitas delas se aglomerando a uma certa distância da janela da cozinha, de onde minha mãe lançava os dejetos - sobras de refeições, cascas de legumes, pó de café e, junto com isso, as sementes que iriam dar origem aos mamoeiros, goiabeiras, pimenteiras e pés de abóbora ou de bucha. Quanta saudade do pé de coração-da-índia, nascido na divisa com a casa vizinha, fruta saborosa que hoje sei chamar-se graviola!
Uma tarde quente de verão. Nesta hora do pôr-do-sol minha mãe está sentada na calçada, sombreada e fresca, fazendo arremates nas costuras enquanto conversa com as vizinhas e observa o movimento das crianças na rua. Eu havia feito um estilingue e permaneci no quintal treinando minha pontaria nas lagartixas que viviam nas frestas do muro e que a essa hora tentavam capturar os minúsculos insetos que saiam para a noite. Ouvindo o canto de um pássaro na goiabeira, virei-me bruscamente e disparei, pontaria certeira. O canto cessou, belo gorjear de um pássaro que nunca mais foi ouvido, agora ali imóvel, um filete de sangue a escorrer do bico fechado. Soou o sino da igreja, era a hora da Ave-Maria; eu tinha na mão uma garrinchinha morta e todos diziam que elas eram protegidas de Nossa Senhora – prece muda, pedido de perdão.
Naquele tempo, a última guerra estava bem presente nas conversas que aconteciam na farmácia de meu pai e eu me sentia atraído pelas imagens veiculadas na revista Seleções do Readers Digest, especialmente as que tratavam de batalhas aéreas. Não sei se estou certo, ou se talvez as minhas lembranças exageram, todos os dias pequenos aviões cruzavam o céu daquele lugar. Ao perceber ao longe aquele ronco demorado e triste, eu corria para o quintal e ficava observando o seu avanço até que ele sumia por trás das serras, lá onde o meu mundo acabava.
Os meus medos quase sempre tinham a ver com a figura do diabo, assombrações, histórias medonhas de luzes, bodes e cheiro de enxofre queimado, contadas pelos mais velhos. Fora o porão da casa, onde jamais teria coragem de ir à noite, havia em toda a vila lugares mal-assombrados, como o cemitério, algumas gameleiras, a ponte do Córrego Preto, algumas casas onde o dito-cujo jogava pedras e, acredite quem quiser, atrás da igreja.
Os pesadelos da infância aos poucos se esfumaram, substituídos pelas imagens da vida, às vezes mais cruéis. Um deles teimou permanecer, repetitivo, imutável. Da calçada vejo surgir um avião. É dia, mas o céu tem uma claridade opaca e uma cor sombria. Sinto uma terrível apreensão e tento entrar para dentro de casa, mas agora já estou no fundo do quintal. De lá posso ver que outros aviões surgiram a oeste, e acima mais aviões cruzam o céu. A esta altura já sei tudo o que vai acontecer, é a guerra, e os aparelhos, em grande número, movem-se com rapidez crescente, as esquadrilhas se atacam. Alguns aviões despencam atingidos e, dali onde estou, deitado no solo e observando com terror a batalha, sinto que estarei em um daqueles aviões, que está para ser atingido e precipitar-se para a morte.
O sino da igreja marca o ritmo monótono da vida – seis da manhã, seis da tarde – ou se dobra para anunciar o inesperado. Badaladas lentas e graves acompanham o sepultamento dos mais velhos; rápidas e agudas para a morte de crianças; graves e agudas se misturam para chamar os fiéis. Cada repicar carrega uma mensagem distinta, de júbilo ou tristeza, e a sua sonoridade é o estado d’alma da gente do povoado.
Márcio José dos Santos
Reescrito em 7 de fevereiro de 2009.
Um comentário:
Márcio, o porão da casa da sua infância também já foi meu esconderijo. Era só aprontar uma de minhas artes e corria para a casa do vizinho (na época, o morador era o sr. Gentil Ruela)para me esconder e esperar que a raiva da mamãe passasse. Ali também eu brincava de escolinha. Era uma delícia colher os jambos que o vento bondosamente jogava no chão. Nunca mais comi jambos, pois nunca mais os encontrei tão apetitosos quanto os que havia no quintal da sua antiga casa. A casa ainda existe, bastante destruída pelo tempo, saudosa daqueles momentos em que era palco das manifestações alegres da meninada de Vilas Boas.
Quanta saudade!
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