Blog do Professor Márcio

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quinta-feira, 9 de abril de 2015

Como negar as evidências da contaminação de Paracatu pelo arsênio?

Sobre o Estudo Epidemiológico de Paracatu
Márcio José dos Santos

Em 18 de março de 2014, as autoridades de Paracatu convocaram precipitadamente uma Audiência Pública na Câmara Municipal para apresentarem o ‘Relatório Final da Avaliação da Contaminação Ambiental por Arsênio e Estudo Epidemiológico da Exposição Ambiental Associada em População Humana de Paracatu-MG’, de autoria do CETEM e FUNCATE. Uma mesa repleta de afetos da mineradora Kinross e uma audiência de leigos, assistiram a apresentação dos resultados, confiantes de que ali estava uma conclusão cientificamente válida. Na voz de algumas autoridades, “podemos dormir tranquilos” porque os argumentos de contaminação ambiental vêm de “pessoas mal intencionadas”.
Nós, que lá não estivemos, mas que estudamos o Relatório, temos aqui uma oportunidade de contestá-lo e assim possibilitar ao leitor uma avaliação mais consciente.
Para o leitor compreender o que vamos expor, o termo “contaminação” refere-se a níveis de concentração de um determinado elemento ou composto químico acima de valores admitidos legalmente como normais. No Brasil, esses valores foram determinados pela Portaria nº 2.914/2011, do Ministério da Saúde. Os valores de referência (VR) para o arsênio (As) são: 10 ppb (partes por bilhão) de As/L de água de consumo. Em urina, teores entre 1 e 5 μg   (micrograma) de arsênio/g C (arsênio por grama de creatinina) podem ser considerados basais para Paracatu, de acordo com o CETEM (Pág. 69); o limite legal é 10 μg/g C. Portanto, acima dos valores de referência (VR) estaremos falando em contaminação.
Valendo-me do espaço democrático de O Movimento, apresento aqui alguns trechos importantes para conhecimento público, e assim uso os direitos à informação e à livre expressão, garantidos pelas leis brasileiras.

Águas Superficiais
Utilizando-se o parâmetro de 10 ppb de As/L de água, das sete amostras de água do Córrego Rico analisadas pelo CETEM, cinco (71,4%) mostram contaminação (teor acima de 10 ppb); no Córrego Pobre, uma de duas amostras analisadas (50%) está acima do limite; no Córrego do Neto, as duas amostras analisadas mostram contaminação (100%); no Córrego Santo Antônio, uma de duas (50%) e no Córrego Santa Rita, duas das cinco amostras mostram contaminação (40%) (Pág. 41, Tabela 7). Os três últimos córregos aqui mencionados correm abaixo das barragens de rejeito, mostrando o efeito de dispersão em pluma de contaminação.
 As análises das águas superficiais ao longo dos anos, colhidas no mesmo ponto no Córrego Rico mostram que a média no período de 13 anos, de 1997-2004, foi de 20,6 ppb As/L, passando a 21,9 ppb no período 2008-2011. Porém, se considerarmos os dois últimos anos, os valores apresentados foram 28,7 ppb (2010) e 25,8 ppb (2011). Isto é, a elevação de teor nos anos mais recentes é muito nítida e ocorre em resposta à expansão da lavra e ao posicionamento dos tanques de drenagem ácida da mina. Todas as análises mostram teores de arsênio acima do dobro, considerando-se o limite estabelecido na Portaria 518/2004. Enquanto isso, dados oferecidos pela Kinross mostram que as águas do Córrego Rico têm concentração de As em torno de 30 ppb à montante da BR-040, isto é, aumentado de 3 vezes o limite legal de 10 ppb (Pág.s 43 e 44).

Poeira da Mina
O estudo do CETEM baseou-se em medições realizadas pelos equipamentos da própria Kinross. Mesmo usando dados suspeitos, obtidos numa situação de evidente conflito de interesse (mas mesmo assim indicadores de grave contaminação ambiental) causa espanto que os autores do estudo não tenham apontado com clareza a gravidade da contaminação atmosférica por arsênio em Paracatu.
Nas Pág.s 56 e 57 do Relatório Final os autores afirmam o seguinte:
‘Os resultados mostram as maiores concentrações de As nos filtros das estações Arena [...], Alto da Colina e União, indicando valores mais elevados nas estações próximas e situadas a sudoeste (SW) da área da mineração de ouro. Se a origem das partículas que contribuem para a maior concentração de As no MP atmosférico destas 3 estações é a área de mineração, outro fator, além da fonte, responsável pelos valores mais elevados nestas estações é a direção predominante dos ventos em Paracatu, que é a de nordeste (NE). [...] É interessante notar (Gráficos 3 e 4) que as maiores velocidades médias do vento acontecem entre 15 e 18 horas, visto que as rajadas também acontecem nesta faixa de horário (ampliada para até as 21 h) atingindo média de 14m/s [...], que engloba o horário de detonações na frente de lavra da mineradora, possivelmente incrementando a dispersão das poeiras oriundas das detonações.’

Avaliação de Riscos
‘Os resultados mostraram que a exposição ambiental ao arsênio não representa perigo potencial de efeitos não cancerígenos em adultos, mas as crianças podem estar sob risco. Para efeitos cancerígenos, crianças e adultos estão sob riscos. As vias que mais contribuem para os riscos são a ingestão de águas durante o banho recreativo e inalação de partículas.’ (Pág.s 61 e 62, Gráficos 7 e 8; o grifo é nosso.)
Porém, o Estudo Epidemiológico não incluiu crianças e adultos com idade abaixo de 40 anos. Este erro é absurdo! De fato, os próprios autores do trabalho conduzido pelo CETEM/FUNCATE recomendam a realização de um estudo em crianças: ‘Sugere-se um estudo piloto de exposição ambiental ao arsênio em crianças, com interesse científico por efeitos sob baixas doses ambientais’ (Pág. 77).

Exames
Os autores usaram como controle as amostras de sangue, cabelo e urina de pacientes com idade acima de 40 anos, colhidas no bairro Paracatuzinho (339 moradores participantes), por ser o bairro mais distante da mina, fonte de dispersão do arsênio. Os resultados dessas amostras foram comparados com os resultados obtidos de amostras de um bairro mais próximo da mina de ouro, o bairro Amoreiras (439 moradores participantes).
Vejamos o que diz o Relatório:
‘Há uma tendência a maiores teores de arsênio em urina na população atendida pelo PSF de Amoreiras do que a atendida pelo PSF de Paracatuzinho, e que está de acordo com os maiores teores de arsênio na atmosfera medidos nas regiões mais próximas da mineração de ouro, indicando maior exposição ambiental via inalação em área próxima à mineração de ouro.’ (Pág. 69).
Porém, a análise dos dados da Tabela 14 (Pág. 68) mostra claramente que essa ‘tendência’ é, na verdade, uma diferença estatística altamente significativa (p ˂ 0,0001). Caro leitor, que não é afeito à estatística: quando ‘p’ é pequeno, e neste caso é quase zero, não há chance dessa diferença entre as médias de teores de arsênio entre as populações examinadas ser devida ao acaso e sim aos fatores que estão sendo estudados. Por que os autores do Relatório Final trataram este resultado como coisa banal, e não como diferença estatistica altamente significativa?

Transparência (?) da mineradora
A mineradora não permitiu o acesso, para fins de amostragem, aos trabalhadores da mina, conforme solicitado pela Prefeitura (Pág. 70). Esta atitude derruba o seu discurso de transparência. Pergunte-se, caro leitor, por que ela não concedeu permissão de acesso aos trabalhadores?
A Kinross fez a sua amostragem e enviou os dados que ela quis. Esses dados não poderiam ser aceitos no âmbito do estudo epidemiológico, porque não estão sob controle.
Mesmo assim, os dados apresentados sugerem que os funcionários da mina têm concentrações de arsênio em urina mais elevadas que as do restante da população de Paracatu (Pág.s 70 e 71). Vejamos o Relatório:
“[...] a empresa Kinross enviou [...] um gráfico com as concentrações de arsênio em urina (μg/g de creatinina) de funcionários alocados em áreas com potencial de exposição ao arsênio. Embora seja difícil de se obter o valor exato da concentração de arsênio pela forma gráfica em que se encontram os dados, pode-se dizer que grande parte dos trabalhadores mostram teores de arsênio em urina acima de 5 μg/g de creatinina, sendo que muitos estão próximos de 10 μg/g de creatinina, um próximo de 15 μg/g de creatinina, dois acima de 25 μg/g de creatinina e um acima de 30 μg/g de creatinina. (Pág. 71; o grifo é nosso.)
“[...] Tais concentrações de arsênio em urina, incluindo o VR são maiores do que a média obtida por exposição ambiental em moradores de Paracatu. Assim, uma vez que os trabalhadores da mineração de ouro também são moradores de Paracatu, recomendamos que a Secretaria Municipal de Saúde tenha acesso aos monitoramentos periódicos da exposição dos trabalhadores com o objetivo de acompanhar as condições gerais de saúde daqueles que mostrem concentrações de arsênio em urina acima da média da população geral.” (Pág. 72)

Resultados
Em suma, os autores do Relatório observaram um aumento de concentração média de arsênio na urina dos moradores de Paracatu em função da proximidade da mina: QUANTO MAIS PRÓXIMO DA MINA DA KINROSS MAIOR O TEOR DE ARSÊNIO NO CORPO.
Basta a comprovação da relação causal entre a atividade poluidora e a contaminação das pessoas, pois, especialmente as concentrações baixas de arsênio consideradas ‘seguras’ costumam ser as mais perigosas, em função dos baixos níveis de resposta adaptativa nessas faixas de concentração; especialmente as crianças e pessoas altamente sensíveis ao efeito tóxico do arsênio. O aumento do teor de arsênio nas populações em função da proximidade da mina sugere, pois, uma relação causal entre a atividade de mineração que libera arsênio para o ambiente (causa), e a contaminação das pessoas (efeito).

Controle de dados de câncer em Paracatu
‘Parte dos registros de saúde municipais em todo o Brasil mostram inconsistências, incluindo as observadas no presente banco de dados.’ (Pág. 65)
Então, se os dados são inconsistentes o CETEM não poderia usá-los para conclusões em um estudo científico, pois isto exige controles e métodos estatísticos adequados e uma base confiável de dados! Além disso, não foi considerado o número significativo de pessoas com câncer em Paracatu que não passam pelo SUS e estão fora das estatísticas utilizadas.

CONCLUSÕES
A Avaliação da Contaminação e o Estudo Epidemiológico, conforme se depreende do Relatório Final preparado pelo CETEM, estão eivados de erros metodológicos, resultados pobres e inconsistentes e conclusões inválidas. Sua publicação em Audiência Pública na Câmara Municipal de Paracatu foi precipitada, inadequada e injustificada, e fere a ética da Ciência.
Mesmo assim, depreende-se dele que a gravidade do cenário é de tal monta que supera a arguição de legalidade da atividade de mineração autorizada, visto que: (i) o Relatório Final do CETEM não afasta a contaminação da população de Paracatu pelo arsênio antropogênico liberado pela Kinross, chegando até a sugerir uma relação causal entre a atividade de mineração, que libera arsênio para o ambiente (causa), e a contaminação do compartimento humano (efeito); (ii) parte significativa da população de Paracatu, representada pelas crianças e adultos abaixo de 40 anos foi simplesmente excluída das análises do Estudo e do Relatório Final; (iii) os índices oficiais de exposição tolerável não foram calculados para períodos de longa exposição diária e várias vias de ingestão, inalação, absorção e resorção.
Nestas condições, manter esta mina a céu aberto é moralmente inadmissível, pois os interesses econômicos não podem se sobrepor ao direito à vida. Geração de empregos não justifica o que está ocorrendo em Paracatu.
A Kinross não foi autorizada a poluir o ambiente e a intoxicar cronicamente a população e os indivíduos, causando-lhes perdas, danos e sofrimento; há perigos reais, graves e evidentes para o ambiente e as gerações atuais e futuras, agravados pela conduta da mineradora, que não publica os resultados do automonitoramento e impede o acesso aos trabalhadores para estudos epidemiológicos independentes.


Observações: 

O texto acima foi retirado do Estudo Epídemiológico do CETEM e da Réplica ao mesmo, elaborada pelo médico Dr. Sérgio Dani e pelo geólogo Márcio José dos Santos.

Publicado no jornal O Movimento, edição 472, de 16 a 31 de março de 2015, página 2, Paracatu - MG, 

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