Sobre o Estudo
Epidemiológico de Paracatu
Márcio José dos Santos
Em 18 de março de 2014, as autoridades de
Paracatu convocaram precipitadamente uma Audiência Pública na Câmara Municipal
para apresentarem o ‘Relatório Final da Avaliação da Contaminação Ambiental por
Arsênio e Estudo Epidemiológico da Exposição Ambiental Associada em População
Humana de Paracatu-MG’, de autoria do CETEM e FUNCATE. Uma mesa repleta de afetos
da mineradora Kinross e uma audiência de leigos, assistiram a apresentação dos
resultados, confiantes de que ali estava uma conclusão cientificamente válida.
Na voz de algumas autoridades, “podemos
dormir tranquilos” porque os argumentos de contaminação ambiental vêm de “pessoas mal intencionadas”.
Nós, que lá não estivemos, mas que
estudamos o Relatório, temos aqui uma oportunidade de contestá-lo e assim possibilitar
ao leitor uma avaliação mais consciente.
Para o leitor compreender o que vamos
expor, o termo “contaminação” refere-se a níveis de concentração de um
determinado elemento ou composto químico acima de valores admitidos legalmente como
normais. No Brasil, esses valores foram determinados pela Portaria nº 2.914/2011,
do
Ministério da Saúde. Os valores de
referência (VR) para o arsênio (As) são: 10 ppb (partes por bilhão) de As/L de água de
consumo. Em urina,
teores entre 1 e 5 μg (micrograma) de arsênio/g C (arsênio por grama
de creatinina) podem ser considerados basais para Paracatu, de acordo com o
CETEM (Pág. 69); o limite legal é 10 μg/g C. Portanto, acima dos valores de
referência (VR) estaremos falando em contaminação.
Valendo-me do espaço democrático de O Movimento, apresento aqui alguns
trechos importantes para conhecimento público, e assim uso os direitos à
informação e à livre expressão, garantidos pelas leis brasileiras.
Águas
Superficiais
Utilizando-se
o parâmetro de 10 ppb de As/L de água, das sete amostras de água do Córrego Rico
analisadas pelo CETEM, cinco (71,4%) mostram contaminação (teor acima de 10 ppb);
no Córrego Pobre, uma de duas amostras analisadas (50%) está acima do limite; no
Córrego do Neto, as duas amostras analisadas mostram contaminação (100%); no
Córrego Santo Antônio, uma de duas (50%) e no Córrego Santa Rita, duas das
cinco amostras mostram contaminação (40%) (Pág. 41, Tabela 7). Os três últimos córregos
aqui mencionados correm abaixo das barragens de rejeito, mostrando o efeito de
dispersão em pluma de contaminação.
As análises das águas superficiais ao longo
dos anos, colhidas no mesmo ponto no Córrego Rico mostram que a média no
período de 13 anos, de 1997-2004, foi de 20,6 ppb As/L, passando a 21,9 ppb no
período 2008-2011. Porém, se considerarmos os dois últimos anos, os valores
apresentados foram 28,7 ppb (2010) e 25,8 ppb (2011). Isto é, a elevação de
teor nos anos mais recentes é muito nítida e ocorre em resposta à expansão da
lavra e ao posicionamento dos tanques de drenagem ácida da mina. Todas as análises
mostram teores de arsênio acima do dobro, considerando-se o limite estabelecido
na Portaria 518/2004. Enquanto isso, dados oferecidos pela Kinross mostram que
as águas do Córrego Rico têm concentração de As em torno de 30 ppb à montante
da BR-040, isto é, aumentado de 3 vezes o limite legal de 10 ppb (Pág.s 43 e
44).
Poeira
da Mina
O estudo do CETEM
baseou-se em medições realizadas pelos equipamentos da própria Kinross. Mesmo
usando dados suspeitos, obtidos numa situação de evidente conflito de interesse
(mas mesmo assim indicadores de grave contaminação ambiental) causa espanto que
os autores do estudo não tenham apontado com clareza a gravidade da
contaminação atmosférica por arsênio em Paracatu.
Nas Pág.s 56 e 57 do Relatório Final os
autores afirmam o seguinte:
‘Os
resultados mostram as maiores concentrações de As nos filtros das estações
Arena [...], Alto da Colina e União, indicando valores mais elevados nas
estações próximas e situadas a sudoeste (SW) da área da mineração de ouro. Se a
origem das partículas que contribuem para a maior concentração de As no MP
atmosférico destas 3 estações é a área de mineração, outro fator, além da
fonte, responsável pelos valores mais elevados nestas estações é a direção
predominante dos ventos em Paracatu, que é a de nordeste (NE). [...] É
interessante notar (Gráficos 3 e 4) que as maiores velocidades médias do vento
acontecem entre 15 e 18 horas, visto que as rajadas também acontecem nesta
faixa de horário (ampliada para até as 21 h) atingindo média de 14m/s [...],
que engloba o horário de detonações na frente de lavra da mineradora,
possivelmente incrementando a dispersão das poeiras oriundas das detonações.’
Avaliação
de Riscos
‘Os
resultados mostraram que a exposição ambiental ao arsênio não representa perigo
potencial de efeitos não cancerígenos em adultos, mas as crianças podem estar
sob risco. Para efeitos cancerígenos,
crianças e adultos estão sob riscos. As vias que mais contribuem para os
riscos são a ingestão de águas durante o banho recreativo e inalação de partículas.’
(Pág.s 61 e 62, Gráficos 7 e 8; o grifo é nosso.)
Porém, o Estudo Epidemiológico
não incluiu crianças e adultos com idade abaixo de 40 anos. Este erro é
absurdo! De fato, os próprios autores do trabalho conduzido pelo CETEM/FUNCATE
recomendam a realização de um estudo em crianças: ‘Sugere-se um estudo piloto de exposição ambiental ao arsênio em
crianças, com interesse científico por efeitos sob baixas doses ambientais’
(Pág. 77).
Exames
Os autores usaram
como controle as amostras de sangue, cabelo e urina de pacientes com idade acima de 40 anos, colhidas no bairro
Paracatuzinho (339 moradores
participantes),
por ser o bairro mais distante da mina, fonte de dispersão do arsênio. Os
resultados dessas amostras foram comparados com os resultados obtidos de
amostras de um bairro mais
próximo da mina de ouro, o bairro Amoreiras (439 moradores participantes).
Vejamos o que diz o Relatório:
‘Há
uma tendência a maiores teores de arsênio em urina na população atendida pelo
PSF de Amoreiras do que a atendida pelo PSF de Paracatuzinho, e que está de
acordo com os maiores teores de arsênio na atmosfera medidos nas regiões mais
próximas da mineração de ouro, indicando maior exposição ambiental via inalação
em área próxima à mineração de ouro.’ (Pág. 69).
Porém, a análise dos
dados da Tabela 14 (Pág. 68) mostra claramente que essa ‘tendência’ é, na
verdade, uma diferença estatística altamente significativa (p ˂ 0,0001).
Caro leitor, que não é afeito à estatística: quando ‘p’ é pequeno, e neste caso
é quase zero, não há chance dessa diferença entre as médias de teores de
arsênio entre as populações examinadas ser devida ao acaso e sim aos fatores
que estão sendo estudados. Por que os autores do Relatório Final trataram este
resultado como coisa banal, e não como diferença estatistica altamente
significativa?
Transparência
(?) da mineradora
A mineradora não
permitiu o acesso, para fins de amostragem, aos trabalhadores da mina, conforme
solicitado pela Prefeitura (Pág. 70). Esta atitude derruba o seu discurso de
transparência. Pergunte-se, caro leitor, por que ela não concedeu permissão de
acesso aos trabalhadores?
A Kinross fez a sua
amostragem e enviou os dados que ela quis. Esses dados não poderiam ser aceitos
no âmbito do estudo epidemiológico, porque não estão sob controle.
Mesmo assim, os dados
apresentados sugerem que os funcionários da mina têm concentrações de arsênio
em urina mais elevadas que as do restante da população de Paracatu (Pág.s 70 e 71). Vejamos o Relatório:
“[...] a empresa Kinross enviou [...] um gráfico com as
concentrações de arsênio em urina (μg/g de creatinina) de funcionários alocados
em áreas com potencial de exposição ao arsênio. Embora seja difícil de se obter
o valor exato da concentração de arsênio pela forma gráfica em que se encontram
os dados, pode-se dizer que grande parte
dos trabalhadores mostram teores de arsênio em urina acima de 5 μg/g de
creatinina, sendo que muitos estão próximos de 10 μg/g de creatinina, um
próximo de 15 μg/g de creatinina, dois acima de 25 μg/g de creatinina e um
acima de 30 μg/g de creatinina. (Pág. 71; o grifo é nosso.)
“[...] Tais concentrações de arsênio em urina, incluindo
o VR são maiores do que a média obtida por exposição ambiental em moradores de
Paracatu. Assim, uma vez que os trabalhadores da mineração de ouro também são
moradores de Paracatu, recomendamos que a Secretaria Municipal de Saúde tenha
acesso aos monitoramentos periódicos da exposição dos trabalhadores com o
objetivo de acompanhar as condições gerais de saúde daqueles que mostrem
concentrações de arsênio em urina acima da média da população geral.” (Pág. 72)
Resultados
Em suma, os autores
do Relatório observaram um aumento de concentração média de arsênio na urina
dos moradores de Paracatu em função da proximidade da mina: QUANTO MAIS PRÓXIMO
DA MINA DA KINROSS MAIOR O TEOR DE ARSÊNIO NO CORPO.
Basta a comprovação da relação causal entre
a atividade poluidora e a contaminação das pessoas, pois, especialmente as
concentrações baixas de arsênio consideradas ‘seguras’ costumam ser as mais
perigosas, em função dos baixos níveis de resposta adaptativa nessas faixas de
concentração; especialmente as crianças e pessoas altamente sensíveis ao efeito
tóxico do arsênio. O aumento do teor de arsênio nas populações em função da
proximidade da mina sugere, pois, uma relação causal entre a atividade de
mineração que libera arsênio para o ambiente (causa), e a contaminação das
pessoas (efeito).
Controle
de dados de câncer em Paracatu
‘Parte
dos registros de saúde municipais em todo o Brasil mostram inconsistências,
incluindo as observadas no presente banco de dados.’ (Pág. 65)
Então, se os dados são inconsistentes o
CETEM não poderia usá-los para conclusões em um estudo científico, pois isto
exige controles e métodos estatísticos adequados e uma base confiável de dados!
Além disso, não foi considerado o número significativo de pessoas com câncer em
Paracatu que não passam pelo SUS e estão fora das estatísticas utilizadas.
CONCLUSÕES
A Avaliação da Contaminação e o Estudo
Epidemiológico, conforme se depreende do Relatório Final preparado pelo CETEM,
estão eivados de erros metodológicos, resultados pobres e inconsistentes e
conclusões inválidas. Sua publicação em Audiência Pública na Câmara Municipal
de Paracatu foi precipitada, inadequada e injustificada, e fere a ética da
Ciência.
Mesmo assim, depreende-se dele que a gravidade do cenário
é de tal monta que supera a arguição de legalidade da atividade de mineração
autorizada, visto que: (i) o Relatório Final do CETEM não afasta a contaminação
da população de Paracatu pelo arsênio antropogênico liberado pela Kinross,
chegando até a sugerir uma relação causal entre a atividade de
mineração, que libera arsênio para o ambiente (causa), e a contaminação do
compartimento humano (efeito); (ii) parte significativa da população de
Paracatu, representada pelas crianças e adultos abaixo de 40 anos foi
simplesmente excluída das análises do Estudo e do Relatório Final; (iii) os
índices oficiais de exposição tolerável não foram calculados para períodos de
longa exposição diária e várias vias de ingestão, inalação, absorção e
resorção.
Nestas condições, manter esta mina a céu
aberto é moralmente inadmissível, pois os interesses econômicos não podem se
sobrepor ao direito à vida. Geração de empregos não justifica o que está
ocorrendo em Paracatu.
A Kinross não foi autorizada a poluir o ambiente e a intoxicar
cronicamente a população e os indivíduos, causando-lhes perdas, danos e
sofrimento; há perigos reais, graves e evidentes para o ambiente e as gerações
atuais e futuras, agravados pela conduta da mineradora, que não publica os
resultados do automonitoramento e impede o acesso aos trabalhadores para
estudos epidemiológicos independentes.
Observações:
O texto
acima foi retirado do Estudo Epídemiológico do CETEM e da Réplica ao mesmo,
elaborada pelo médico Dr. Sérgio Dani e pelo geólogo Márcio José dos Santos.
Publicado no jornal O Movimento, edição 472, de 16 a 31 de março de 2015, página 2, Paracatu - MG,
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