Blog do Professor Márcio

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terça-feira, 27 de outubro de 2009

Tiradentes

Há muitos anos que eu acalentava o desejo de viajar de trem, saudade de um passado distante na velha Estrada de Ferro Leopoldina. Minha idéia era fazer a viagem de Belo Horizonte a Vitória, então fui à Praça da Estação, em BH, e lá procurei o guichê da Vale do Rio Doce. Quinta-feira e os bilhetes já estavam esgotados até sábado! Era véspera de um fim de semana prolongado pelo feriado da Independência, de maneira que a viagem só seria possível no domingo. Fiquei por ali uma meia hora, vacilando se compraria ou não a passagem: a viagem é demorada, cerca de 14 horas, ainda teria a volta e isto não compensaria se eu não ficasse em Vitória pelo menos uns dois dias. Tomei a decisão de pensar no assunto até mais tarde, primeiro iria verificar se haveria uma alternativa

Pela Internet achei a solução (santa Internet!): uma pequena viagem numa locomotiva de museu, daquelas que a gente vê em filme de faroeste, que vai de São João del Rei a Tiradentes. A troca, à primeira vista, não tem cabimento: o trem BH-Vitória é moderno, com duas classes de passagens, onde se pode optar por vagão com ar condicionado, uma longa viagem passando por muitas cidades;
a Maria Fumaça é uma locomotiva à vapor de 1890, e a viagem pra lá e pra cá dura apenas uma hora e vinte minutos. Mas o que pesou na balança para que eu ficasse com a Maria Fumaça é que eu poderia convidar meus filhos para o passeio, e aí qualquer um concordaria comigo que o melhor de qualquer passeio é a companhia que a gente tem.

A Estação Ferroviária de São João del Rei é primorosa, guarda os traços antigos, mas tem ar de museu, com recepcionistas sorridentes, bons sanitários, uma coleção de locomotivas à vapor e um vagão onde os saudosistas podem tirar fotos de época. Você aluga uma indumentária completa do Século XVIII e fica vestido à caráter, seja homem ou mulher. Então os “retratistas” tiram de você uma foto envelhecida e fica como se você tivesse entrado numa máquina do tempo, de volta ao passado colonial.

Lá estávamos a Janine e o Diogo - meus filhos; a Simone - minha nora, e meus netos Iasmin e Gabriel.
Não sei quem estava mais alegre, se avô ou netos, porque embora sejam as crianças que mais saboreiam os momentos da vida, para mim era um retorno à infância, e eu estava experimentando as mesmas emoções dos momentos mágicos que marcaram minhas viagens de trem. Aguardando a partida, enquanto tirávamos fotos, eu prestava atenção a cada detalhe: as cadeiras reversíveis, o toque do sino, o vendedor de doces, uma linda negra vendendo pirulitos. O apito do fiscal deu o sinal de partida, logo veio o cobrador de bilhetes, os sacolejos ritmados enquanto a máquina seguiu fazendo “café com pão, manteiga não, café com pão, manteiga não”.

O vale do Rio das Mortes, por onde o trem serpenteia entre São João del Rei e Tiradentes, tem uma feição estranha.
A exploração do ouro contido nos leitos de cascalho deixou uma série de monturos entremeados por buracos, marcas perpétuas na paisagem. Os monturos estão hoje cobertos por uma relva baixa e rala, enquanto nos buracos formaram-se pequenas lagoas. Isto se remete ao ciclo do ouro, quando centenas de aventureiros e seus milhares de escravos escavaram os depósitos auríferos, deixando para trás desolação e generalizada contaminação ambiental.

Levanto os olhos e contemplo a Serra de São José, extenso e íngreme paredão de quartizito, donde o ouro migrou junto com o cascalho para se depositar no fundo do vale.
Tiradentes, logo abaixo, foi um dos locais onde mais se produziu ouro de superfície no Brasil. Meu pensamento traz a lembrança de Tiradentes – o homem, e tento imaginá-lo andando à cavalo nas trilhas que levavam até ao arraial que, então, era conhecido como Santo Antônio da Ponta do Morro. Veio-me uma profunda compaixão por aquele sonhador, que morreu como bandido, condenado pelos portugueses. Se naqueles tempos seus próprios compatriotas se envergonhavam dele e seu nome foi logo esquecido, hoje três cidades disputam ser o berço de seu nascimento. Afinal, a República transformou o bandido em herói, aí todos querem se identificar com ele, ganhou estátuas e admiradores, pois em todos os tempos a hipocrisia continua sendo a marca dos oportunistas.

Os apitos da Maria Fumaça me tiram do passado, avisando-nos que estamos chegando à Estação de Tiradentes. Estico o pescoço sobre a janela do trem para ver a aglomeração de pessoas que esperam sorridentes a nossa chegada, mas não enxergamos a cidade, oculta do outro lado da ponte sobre o Rio das Mortes.

Durante vários dias fiquei pensando numa palavra que descrevesse a cidadezinha de Tiradentes, uma palavra que ninguém ainda tivesse dito sobre ela. Vasculhei na Internet muitas páginas sobre Tiradentes – a cidade – e vi que não sobrou uma palavra assim, de maneira que só posso dizer aquela que, para mim, melhor a descreve: encantadora! Uma jóia do Século XVIII que escapou da destruição e da descaracterização que atingiram nossas cidades coloniais. Quem conhece de perto o que aconteceu com Paracatu acaba se surpreendendo com uma cidade que, mesmo intensamente explorada pelo turismo, ainda se preserva como uma relíquia barroca.

O centro da cidade fica a uns mil metros da estação, o sol estava quente, então resolvemos fazer o trecho em uma charrete. Iasmin, fã número 1 da Barbie, ficou encantada com a nossa charrete cor de rosa. Passando sobre um calçamento irregular de pedras, fomos até uma praça que talvez seja o maior estacionamento de charretes do Brasil.
Nunca vi tanta charrete, parece ser um bom negócio levar turistas morro acima, sacolejando entre os vãos do calçamento. Ali tudo é voltado para o turismo, todas as casas foram transformadas em pontos de comércio, vendendo artesanato ou comida.

As belezas de Tiradentes estão bem documentadas em vários sítios na Internet, de maneira que vou aqui apenas fazer referência ao artesanato mais diversificado e bonito que vi até hoje, coisas de estanho, madeira, prata, palha, tecidos, ferro, tudo do mais fino gosto; também os doces artesanais, que só as cozinheiras mineiras sabem fazer bem, restaurantes para todos os gostos e, se você tiver tempo, as capelas e museus.


A minha turma estava com fome, então fomos atrás de um restaurante. Pedimos referência a três carroceiros e todos nos indicaram o mesmo – Divino Sabor -, segundo eles o melhor e o mais “em conta”. Filosofia de mineiro: “em conta”. Pois é pra lá que fomos, comer frango com ora-pro-nóbis, jiló, angu e lingüiça caseira. Bem, isto comi eu, já que a minha turma, geração Mcdonalds, foi mesmo de batatinha frita e acompanhamento.

Estava acontecendo uma feira de artesanato, promovida pelo Governo de Minas, com expositores de muitas cidades, tinha banca até de índios e de peruanos (pode acreditar!). Andamos por lá comprando pouco, porque é tanta coisa que a gente fica em dúvida e desiste. Circulamos nas ruas próximas e aí chegou a hora de ir embora, pois o último trem volta para São João del Rei às cinco da tarde. Ficou a sensação de que conheci pouco da cidade e que um dia ainda voltarei para caminhar nas ruas íngremes, conversar com as pessoas do lugar e apreciar a cidade numa tarde calma, sem tantos turistas.


Novamente dentro da Maria Fumaça, constatei que todos estávamos felizes com o passeio. O sol já se escondera por detrás da serra e a tarde ia se fazendo noite quando o trem entrou barulhento em São João del Rei, as pessoas da cidade paradas nas calçadas nos vendo passar, crianças acenando e a gente acenando de volta, feito criança, o maquinista tocando o apito furiosamente, fazendo festa para a nossa chegada.

Como é bela a felicidade quando ela é compartilhada!

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