A Segunda Nobre Verdade é a Causa ou Origem do Sofrimento, que nos possibilita conhecer a desarmonia entre o nosso eu ilusório e a realidade. Esta Verdade nos ensina que o sofrimento, a existência, o eterno vir-a-ser é produzido pelo desejo, ânsia, sede ardente de satisfazer todas as formas de desejos ligados aos nossos sentidos, que continuadamente procuram novas satisfações.
Embora o pensamento, sob a forma de desejo e ânsia em todos os seus aspectos, seja uma força criadora e perpetue a vida, essa avidez dá origem a todas as formas de sofrimento. Porém não devemos considerar o desejo como sendo a primeira causa; segundo o Budismo, não existe uma causa primeira; tudo é relativo e interdependente. O desejo depende, para o seu surgimento, de uma outra coisa, que é a sensação; e o aparecimento da sensação depende, por sua vez, do contato e, assim por diante, gira a roda da existência.
Deste modo, o desejo é a causa imediata, a causa principal que nossa mente pode conceber. Lembramos nesta síntese que o desejo tem por base a falsa idéia de um “eu” (eu pessoal), que surge da ignorância que mantém nossa aparente personalidade. A palavra “sede” compreende não somente o desejo e o apego aos prazeres dos sentidos, à riqueza e ao poder, como também às idéias, opiniões, teorias, concepções e crenças. Segundo a análise feita por Buda, todas as infelicidades, todos os conflitos do mundo, desde as pequenas discussões de família até as grandes guerras entre nações, têm suas raízes nessa sede de desejo.
Vejamos um dos sermões do Buda sobre o desejo:
"Feliz realmente é aquele que consegue satisfazer os desejos do seu coração. Mas quando não o consegue, o que então experimenta é a dor, como quando se é ferido por uma flecha. Aquele que se acautela contra os prazeres dos sentidos, assim como faria para não pisar numa cobra, como fruto mesmo da permanente vigilância, evita o perigo dos desejos que possam ter conseqüências indesejáveis. Quem está sempre dominado pelos ardentes desejos de posse, terrenos, fazendas, ouro, gado, criados, mulheres, parentes etc., será finalmente derrotado pelos problemas e soçobrará, assim como o barco fendido quando invadido pelas águas.
Permanecei vós, portanto, sempre em vigilância, evitando os prazeres dos sentidos e libertando-vos do desejo. Aliviando, pois, o barco de toda carga inútil, atravessai então a correnteza e atingi a segurança da outra margem – Nirvana".
Segundo o Budismo, o ser é uma combinação de forças ou energias físicas e mentais em fluxo constante. O que chamamos de morte é somente a parada completa do funcionamento do corpo físico. Mas a vontade, o desejo, a sede de existir, de continuar, de vir-a-ser constituem a maior força existente que anima todas as vidas, todas as existências, o mundo inteiro. Essa força não se detém com a morte, continua manifestando-se sob outra forma, produzindo uma nova vida chamada renascimento. Se a morte fosse o fim da causalidade, isto é, das causas e efeitos que caracterizam a vida do eu, ela se confundiria com a libertação.
O desejo se encontra no agregado das formações mentais; portanto, a causa, o germe do sofrimento encontra-se na própria mente do indivíduo que sofre, ainda que a causa pareça vir do exterior. É fácil admitir que todos os sofrimentos são causados pelo desejo egoísta. Mas como esse desejo, essa “sede” pode produzir a re-existência e o eterno vir-a-ser? Para isto é necessário compreender o aspecto filosófico da teoria do Carma e do Renascimento, que constitui um dos princípios fundamentais da doutrina budista.
Na teoria budista, carma expressa unicamente a ação da vontade, boa ou má, consciente ou inconsciente. Cada ação da vontade produz seus efeitos, resultados, ou frutos. Um bom carma, ou uma boa ação, produz bons efeitos; um mau carma, ou má ação, consequentemente, produzirá maus efeitos. O desejo, o querer, o carma, bom ou mau, tem por efeito uma só força, a força de continuar numa direção boa ou má.
No Budismo, a teoria do carma é uma teoria de causas e efeitos, de ação e de reação. Pela vontade o homem age com o corpo, a palavra e a mente. Os desejos geram ações; as ações produzem resultados; os resultados trazem novos desejos, e assim sucessivamente. Este processo de causa e efeito, ação e reação exprime uma lei natural que nada tem a ver com a idéia de uma justiça retributiva (não há o conceito de pecado), de recompensa ou punição decretada por um Ser Supremo.
O carma abrange tanto a ação passada quanto a presente. Portanto, num sentido, somos o resultado do que fomos e seremos o resultado do que somos. Conforme semeamos, colhemos nesta vida, ou num futuro renascimento. O que colhemos hoje foi aquilo que semeamos, tanto no passado como no presente. Carma, em si mesmo, é uma lei que opera no seu próprio campo de ação. As nossas ações passadas, cujos efeitos chamamos, hoje, nosso destino, influenciam o nosso presente, mas possuímos livre arbítrio completo e total, plena liberdade de ação.
O carma do passado condiciona o atual nascimento e o atual carma, e o livre arbítrio condiciona o futuro. A realidade do presente dispensa provas, pois é evidente por si mesma. O passado é baseado na memória e na referência, e o futuro na reflexão e na dedução.
A mente é o fator que ativa a vida, e os corpos físicos dos seres vivos são somente o resultado material de forças mentais anteriores que foram geradas em vidas passadas. O Buda disse: “A mente antecede todos os fenômenos; a mente os domina e cria”.
A força invisível gerada pela mente, quando ela é liberta do corpo e projetada para além da morte, agarra-se aos elementos do mundo material e deles molda uma nova forma de vida. Esta força mental gerada pode ser comparada à lei da gravidade que opera sobre os corpos materiais, sem qualquer agente material de conexão; assim também é o caso da energia mental que anima os seres vivos.
Esse processo é inseparável do processo paralelo de renascimento, porque o renascimento não é a reencarnação de uma “alma” depois da morte, mais precisamente, é a continuação da corrente de causa e efeito, de uma vida para outra. O que chamamos vida é uma combinação de energias físicas e mentais que mudam incessantemente. Consequentemente, durante a vida nascemos e morremos a cada instante, no entanto, continuamos a existir. É como se a chama de uma vela, que não é sempre a mesma, nem tampouco outra.
Quando o corpo físico não é mais capaz de funcionar, as energias mentais não morrem com ele, mas continuam a se manifestar sob outra forma que nós chamamos uma outra vida, persistindo o impulso para prosseguir na luta para uma outra existência. Nossas ações não são perdidas, mesmo depois da morte. Após a dissolução do corpo, nossa atuação continuará produzindo seus frutos. Em conseqüência da causação gerada no transcurso de uma existência, um novo ser renascerá futuramente, em qualquer parte, para continuação desta causação. Um novo ser, que é novo apenas num certo sentido, mas que é o mesmo no sentido cármico. A identidade da personalidade é dada pela continuidade; é uma continuidade semelhante àquela graças à qual identificamos um rio como entidade, muito embora a água que o constitui se renove sem cessar. A continuidade cármica é o rio de ação que constitui o indivíduo e o identifica. Há apenas continuidade de carma.
Assim, o renascimento não tem o sentido da imortalidade, mas apenas o de uma simples continuidade dentro da mutabilidade. Quando uma chama acende outra, nada transmigrou. Exatamente como a passagem da chama de uma vela, para o advento de uma chama em outra vela, é a passagem do carma, do corpo já imprestável pela morte, para um novo agregado material, adequado à continuação do processo do eu.
Como já aprendemos, tudo que tem por natureza surgir, da mesma forma tem por natureza cessar. Isto nos leva à terceira parte do Caminho do Meio - Cessação do Sofrimento da Existência -, que constitui a Terceira Nobre Verdade, nossa próxima postagem.
Texto baseado na obra de:
- SILVA, Georges da & HOMENKO, Rita. Budismo: Psicologia do Autoconhecimento. São Paulo: Ed. Pensamento, 1990.
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