“O que a população precisa saber é que essa
reforma é profundamente injusta e que o dinheiro que se quer economizar vai
sair dos mais pobres”, diz Sonia Fleury
Rio de Janeiro (RJ) (Brasil)
8 de abr de 2019 às 14:27
8 de abr de 2019 às 14:27
A política de Previdência que um governo leva à frente não se resume a
concessão de benefícios. Mais do que isso, expressa um projeto de construção de
sociedade. Nesse sentido, a Proposta de Emenda Constitucional da Reforma da
Previdência, PEC 06/2019, enviada ao
Congresso pelo governo em fevereiro, aponta para uma sociedade injusta e
excludente, em que os mais pobres serão penalizados. A análise é da sanitarista
Sonia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz,
que desde 1978 trabalha com o tema da Previdência Social, examinando seus
aspectos políticos, sociais e econômicos.
A PEC, explica Sonia, torna constitucionais medidas que vão na contramão
da proposta de seguridade social. A mais impactante delas é a capitalização. “A
capitalização é um modelo oposto ao da seguridade. Não é solidário em nada.
Você tem uma conta individual, e vai capitalizá-la durante a vida inteira”,
explica. “Se o empregado não conseguir capitalizar, problema dele”, destaca a
sanitarista nesta entrevista para o blog do CEE-Fiocruz.
À frente de um grupo de pesquisa no Centro, sobre o futuro da proteção
social, Sonia vem buscando analisar a PEC e seus impactos [acesse o estudo aqui].
Entre os muitos dados que levantaram, chama atenção que, de acordo com a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), de 2017, há 30 milhões
de pessoas vivendo em famílias nas quais 50% ou mais da renda provêm de
aposentadoria ou pensão. Isso significa que a ausência desses recursos
representará aumento da pobreza, com impacto direto no mercado interno e
redução no crescimento econômico. “O que a população precisa saber é que essa
reforma é profundamente injusta e que o dinheiro que se quer economizar vai
sair dos mais pobres”, diz Sonia.
Leia a entrevista a seguir
CEE Fiocruz - No que diz respeito à proteção social, que impressões
gerais é possível destacar a respeito da PEC da Reforma da Previdência?
Sonya Fleury - Uma proposta de política para a Previdência de um governo
tem impacto geral sobre a qualidade de vida da população e define que tipo de
sociedade queremos construir. Não se trata só da concessão de um benefício, mas
de um projeto de construção de sociedade. A proposta de política que se tem
define a sociedade que se quer criar.
E nesse caso, para que tipo de sociedade se está apontando? Conforme
vocês destacam no levantamento que fizeram, houve outros momentos em que foram
tomadas medidas de contenção de recursos relativos à Previdência – criação do
teto para os benefícios do regime geral, fator previdenciário, teto para o
funcionalismo público, entre outras. Em que a PEC 06/2019 diferencia-se dessas
medidas anteriores?
Fizemos um texto, eu e [a pesquisadora] Rosangela Alves, Reforma previdenciária no Brasil em
três momentos (2004), em que tomamos como a principal reforma a
própria Constituição de 1988. Ela faz mudanças profundas, no sentido de
construção da seguridade social, que desvincula o benefício da contribuição o
mais possível. Se a pessoa não dá conta de contribuir para ter um benefício
mínimo, a sociedade vai garantir isso. A seguridade cria várias fontes de
financiamento, diversificadas. Há toda uma construção que vai do padrão do
benefício à institucionalidade do financiamento. Dentro da perspectiva da
seguridade, identificamos duas outras reformas, no governo Fernando Henrique
Cardoso [Emenda Constitucional nº 20, de 1998] e no governo Lula [Emenda
Constitucional nº 41, de 2003], já com uma preocupação quanto à estabilidade
financeira. No governo Fernando Henrique, criam-se regimes diversificados para
a Previdência – regime geral [que abarca a população em geral, como os
trabalhadores da iniciativa privada e os contribuintes individuais], regime
próprio [que abarca os servidores públicos titulares de cargo efetivo, cuja
previdência, até então, era parte dos custos administrativos da União],
militares e previdência privada complementar. Cria-se também um fator
previdenciário, que vai indicar o valor do benefício em função da expectativa
de vida e do tempo de contribuição. Posteriormente, no governo Lula, busca-se
uma reforma mais no setor público, no regime próprio. Estabelece-se um teto
para o benefício, que se iguala ao do regime geral, e cria-se a previdência
complementar. Essa proposta é de 2003, e só em 2012 virou lei, entrando em
vigor a partir de 2013. Foram dez anos de disputas. A lei não pegou de
imediato. Mas essas reformas não alteraram a seguridade social, não romperam
com a ideia de um sistema solidário. Ao contrário, buscou-se incluir outros
grupos, dentro da ideia de previdência universal.
O objetivo não era desmontar o que havia...
Sim, era dar viabilidade financeira, sem romper com modelo. Claro que
houve medidas que se mantêm até agora e que são um fator de complicação, como a
DRU [Desvinculação dos Recursos da União], iniciada no governo Fernando
Henrique Cardoso, que libera recursos constitucionalmente dedicados à
seguridade social para o governo usar como quiser. Isso vem desde o Plano Real,
como parte da proposta de estabilização da moeda e, de tempos em tempos, se
renova, deixando de trazer, claro, mais recursos para a área social. Nos
últimos governos do PT também houve uma política econômica bastante prejudicial
à seguridade, que concedeu isenções de tributos para grupos empresariais, como
os fabricantes da linha branca[eletrodomésticos, como geladeiras e
máquinas de lavar], para favorecer o consumo da classe C. Outros grupos
passaram a fazer pressão e foram obtendo essas isenções também. O IPI dos
produtos industrializados e outros impostos que deveriam vir para a seguridade
não vieram. Só que nada disso quebrou a espinha dorsal da seguridade social,
que é solidária, desvincula contribuição de benefício, é inclusiva e com
perspectiva de redistribuição. A literatura chama essas reformas de
paramétricas, isto é, elas mudam os parâmetros apenas – tempo de contribuição,
valores, fórmula de cálculo, tempo para aposentadoria. Não são reformas
estruturais.
Essa reforma que a PEC prevê tem caráter estrutural?
Sim. Essa agora é uma reforma estrutural. Apesar de se manter um sistema
de contribuições e benefícios com mudanças paramétricas, no que diz respeito a
idade e fórmula de cálculo, ela constitucionaliza a alternativa da
capitalização. A capitalização é um modelo oposto ao da seguridade. Não é
solidário em nada. Você tem uma conta individual, e vai capitalizá-la durante a
vida inteira. É um modelo de contribuições definidas e não de benefícios
definidos, como o da seguridade social, em que se contribui a vida inteira e se
sabe no final que haverá um recebimento determinado. No modelo de
capitalização, é o contrário: você tem definido quanto tem que depositar por
mês, mas não sabe quanto vai receber no final.
Do que dependerá esse recebimento?
Essa não é uma política pública no sentido da redistribuição. É a pessoa
que acumula, é uma conta do empregado. Se esse empregado não consegue
capitalizar o mínimo para ter depois um benefício também mínimo, problema dele.
E quanto mais tempo a pessoa viver, pior, porque se o dinheiro acaba antes, ela
fica na miséria. No Chile, havia uma classe média que virou pobre, depois que
se aposentou. Isso acabou gerando custos para o Estado, uma crise. São empresas
que recebem o recurso da contribuição e vão aplicar, cobrando seus custos para
isso. Você fica à mercê do mercado financeiro. No caso do Chile, supunha-se que
as empresas iriam competir entre elas e, com isso, os custos administrativos
cairiam. Mas, em vez disso, uma empresa foi comprando a outra, elas viraram um
monopólio e não houve concorrência alguma. Os cursos administrativos foram
altíssimos sempre.
Há um estudo da OIT mostrando que de 30 países que privatizaram seus
sistemas de previdência, entre 1981 e 2004, 18 já reverteram a medida. Como
isso pode ser levado em conta no caso brasileiro?
Foi feita o que chamam de uma re-reforma, que começou principalmente em
2008, com a crise do capitalismo financeiro. Esse modelo de privatização de
previdência é completamente sensível ao mercado financeiro, pois é no mercado,
com todos os riscos de instabilidade, que se aplicam as contribuições. É uma
financeirização da política social. É preciso perguntar a quem fez a PEC por
que não considerou a experiência internacional, por que essas informações não
foram trazidas para uma discussão. Como é que se faz uma proposta dessa, sem
colocar isso na mesa? Por que insistir em algo que está dando errado no mundo
inteiro? E há o custo muito alto de transição do modelo de repartição para o de
capitalização, no sentido de que as pessoas que têm mais dinheiro vão
capitalizar. E quem vai pagar para quem não tem condição? Nos casos como o das
mulheres que entram e saem do mercado com muita facilidade, para cuidar de
filhos, ou de pessoas sem qualificação, sempre os primeiros a serem mandados
embora, entre outros, não se consegue juntar o suficiente para ter uma
aposentadoria. O grande passo para trás é vincular o benefício ao salário,
quando a coisa mais escassa hoje é salário e emprego formal. A seguridade tinha
tentado romper parcialmente com isso. Agora que estamos no momento da indústria
4.0, em que milhões de empregos vão acabar, com uma alteração enorme da
dinâmica de trabalho, essa reforma olha pelo retrovisor, e não para a sociedade
que está se construindo.
É um ciclo que não fecha. Vai se dificultando ou se criando um
desinteresse pelo investimento na previdência pública...
A ideia é extinguir a previdência pública. Não há redistribuição. Os que
podem muito capitalizam no mercado financeiro. Quem não tem vai depender do que
conseguiu contribuir.
A senhora chama atenção para as consequências do aumento do tempo de
contribuição para 20 anos que consta da PEC, considerando que não está sendo
discutido como deveria. Por quê?
Por exemplo, as mulheres que se aposentam hoje fazem isso com tempo de
contribuição menor do que esse que está sendo proposto. Em 2014, cerca de 26,7%
se aposentaram com até 15 anos de contribuição, e 44%, com até 19 anos. Ou
seja, mais da metade das mulheres não chegariam aos 20 anos pelas novas regras.
Elas se aposentam por idade, e não por tempo de contribuição. E há outras
coisas absurdas na proposta, como a restrição do abono salarial do PIS/Pasep
apenas a quem recebe um salário mínimo e não mais até dois salários. Há milhões
de trabalhadores pobres que deixarão de receber esse 14º salário. Outra coisa,
ainda, é a fórmula de cálculo do valor da aposentadoria por invalidez, em que o
recebimento de 100% do valor só é possível se o acidente decorrer de atividade
de trabalho. Se não, são apenas 60%. Um senhor de idade que se acidenta e já
trabalhou quase a vida inteira pode ser que chegue perto de cem por cento. Mas
um jovem que se acidenta e não pode mais trabalhar, vai ganhar 60% de
aposentadoria. É um dos grandes ataques à seguridade social. A Constituição
afirma que nenhum benefício pode ter valor mensal inferior a um salário mínimo
[artigo 201, parágrafo segundo]. Mas com essas contas da PEC, pode-se ficar só
com 60%.
Toda a economia que se diz que a PEC vai propiciar, na verdade, será às
custas de quem mais precisa...
É o maior confisco sobre a economia popular e sobre os direitos sociais.
Retira direitos e dinheiro dos mais pobres. Saiu uma matéria na imprensa
mostrando que, com a crise, o desemprego e os salários baixos, os benefícios
têm peso cada vez maior na renda familiar. Tirar os benefícios transforma as
pessoas em miseráveis. A PEC desconstitucionaliza benefícios e direitos e torna
constitucional a capitalização.
Isso tem impacto na economia do país também, não?
Em 61% dos municípios brasileiros, as transferências de recursos feitas
pelo INSS superam os valores transferidos por meio do Fundo de Participação
Municipal. A economia de grande parte dos municípios vive, então, em função dos
benefícios recebidos pela população. Os municípios menores ficam esperando o
dia de pagamento do benefício da Previdência, porque é nesse dia que as lojas
vendem. Os prefeitos sabem disso.
Há tempo para que essas questões cheguem à população e aos gestores e
seja discutida?
A PEC ainda não entrou em discussão no Congresso. Há um caos geral para
se conseguir formar uma coalisão mínima para aprovar. O presidente tem posição
completamente ambígua, o que ficou claro na concessão feita aos militares,
enquanto todos estão com uma cota de sacrifício altíssima. Ainda tem muita
coisa para rolar. São muitas tensões, muitos regimes, muitos percentuais. O que
a população precisa saber é que essa reforma é profundamente injusta e que o
dinheiro que se quer economizar vai sair dos mais pobres.
Esta matéria foi extraída de: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/economia/57843/reforma-da-previdencia-e-o-maior-confisco-sobre-a-economia-popular-e-os-direitos-sociais