Os desreguladores hormonais presentes em
plásticos e cosméticos e que foram encontrados em crianças brasileiras
Revista IHU-On Line. http://www.ihu.unisinos.br/583063-os-desreguladores-hormonais-presentes-em-plasticos-e-cosmeticos-e-que-foram-encontrados-em-criancas-brasileiras. 25 Setembro 2018.
Diariamente, absorvemos diferentes contaminantes presentes não só no ar,
na água e em alimentos, mas também em diferentes produtos – de garrafas plásticas,
detergentes, papéis emitidos pela máquina de cartão de crédito a esmaltes,
sabonetes e plástico filme.
A reportagem é de Alessandra Goes Alves, publicada por BBC
Brasil, 23-09-2018.
Conhecidas como "desreguladores endócrinos",
algumas destas substâncias podem interferir na síntese e ação de hormônios,
responsáveis por funções como metabolismo, crescimento, desenvolvimento,
reprodução, sono e estado de ânimo.
A fim de verificar o nível de exposição de crianças brasileiras a essas
substâncias, um grupo de pesquisadores analisou a concentração de 65 desreguladores
endócrinos em urinas de 300 crianças das cinco regiões do país, com idades
entre 6 e 14 anos.
Segundo a pesquisa, os compostos químicos associados ao uso de
cosméticos, produtos de cuidado pessoal e plásticos foram encontrados em
concentrações elevadas, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do
país.
"Os dados da pesquisa mostram que crianças brasileiras estão
expostas a alguns desreguladores hormonais em concentrações
maiores do que aquelas encontradas em países como EUA, Canadá e China,
que realizam esse estudo mais rotineiramente", diz Bruno Alves Rocha,
pesquisador da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo
de Ribeirão Preto e autor do estudo, publicado na revista
científica Environmental International.
Iniciada em 2016 e realizada em parceria com pesquisadores do Departamento
de Saúde do Estado de Nova York, a pesquisa apontou que a maioria dos desreguladores relacionados
ao uso de cosméticos e produtos de cuidado pessoal foram encontrados em maior
concentração nas meninas.
Esta diferença chegou ao dobro em algumas substâncias - como o triclosan (presente
em desodorantes e sabonetes antibacterianos), alguns parabenos (conservantes) e
alguns benzofenonas (utilizados principalmente na formulação de esmaltes e
presentes em protetores solares, produtos de maquiagem e produtos de cabelo).
"Isso mostra que esses produtos são uma fonte importante de
exposição a estas substâncias", avalia o pesquisador. De acordo com a
consultoria Euromonitor International, o mercado de cosméticos e
produtos de cuidado pessoal voltados ao público infantil no Brasil foi
o terceiro maior do mundo em 2017.
Outro destaque da pesquisa, segundo artigo publicado na revista
Science of the Total Environment, se refere à presença de ftalatos em pelo
menos 90% das amostras de urinas analisadas. A partir do cálculo do nível de
ingestão diária, os pesquisadores apontaram que um terço das crianças
apresentaram níveis tóxicos dessa substância.
Além de compor fragrâncias em produtos como sprays de cabelo, loções
pós-barba, sabões, xampus e perfumes, os ftalatos também são usados como
solventes e na fabricação de plásticos mais flexíveis ou resistentes - estando
presentes em produtos de limpeza, resinas e principalmente em plásticos (como o
policarbonato, plástico filme, embalagens e brinquedos).
Procurada pela BBC News Brasil, a Associação
Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC)
disse que "não está claro o efeito dos ftalatos na saúde humana". E
a Associação Brasileira da Indústria Química (ABIQUIM)
disse que ainda são necessários estudos científicos para entender "quando,
onde e como usar seguramente cada substância".
Consequências ainda desconhecidas
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS),
existem cerca de 800 compostos químicos suspeitos de interferir no sistema
hormonal e "apenas uma pequena fração" dessas substâncias foi
investigada. A organização diz que a falta de dados traz "incertezas sobre
a extensão dos riscos".
"Muitas (dessas substâncias) propiciaram melhorias e progressos ao
longo do século 20, mas ainda precisamos investigar os impactos sobre a saúde
humana, principalmente quando elas estão associadas", diz Denise
Pires de Carvalho, médica da Sociedade Brasileira de Endocrinologia
Médica (SBEM) e professora de biofísica da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Apesar das divergências na literatura científica sobre quais
concentrações dessas substâncias são consideradas aceitáveis, em 2016, a Comissão
Europeia divulgou uma lista com 66 compostos químicos avaliados de
terem "clara evidência de perturbação da atividade endócrina".
Em 2016, os EUA proibiram a comercialização de
sabonetes antibacterianos que contenham 19 ingredientes químicos, incluindo
o triclosan (agente bactericida), sob a justificativa de não
haver garantias de que essas substâncias sejam seguras. A determinação se
baseou em pesquisas que indicaram que a exposição prolongada às substâncias
analisadas pode provocar alterações hormonais e aumentar a resistência
bacteriana.
Estudos recentes investigam impactos de desreguladores
endócrinos sobre o sistema reprodutor humano. Uma pesquisa
desenvolvida pela Universidade de Rochester, em Nova York,
apontou que alguns ftalatos bloqueiam a ação do hormônio masculino testosterona
em bebês, interferindo no desenvolvimento genital e cerebral de meninos.
Cientistas também investigam se a queda da qualidade do sêmen no mundo,
verificada pela OMS, está relacionada à ação de desreguladores
endócrinos.
Em 2011, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
proibiu a presença do bisfenol A (usado
na produção de plástico policarbonato) em mamadeiras destinadas a crianças de
até 12 meses.
"Hoje sabemos que essa substância está associada à diabete mellitus
e obesidade infantil, além de poder causar puberdade precoce e alterações na
tireoide", afirma Carvalho, da UFRJ.
No estudo do pesquisador da USP, a mineração dos dados –
metodologia que verifica padrões em uma grande quantidade de informações –
apontou que urinas com altas concentrações de diferentes desreguladores também
apresentaram maiores concentrações de 8OHDG, molécula que, em
grande quantidades, indica a ocorrência de lesão nas células.
"Este processo danifica o DNA e favorece a
ocorrência de obesidade, infertilidade, doenças cardiovasculares e alguns tipos
de câncer, principalmente aqueles relacionados ao sistema reprodutor",
explica Rocha.
Um terço dos 65 compostos químicos analisados na pesquisa apareceu
simultaneamente em pelo menos metade das amostras e apresentaram altas
concentrações de 8OHDG, o que indicou a associação entre diferentes
compostos e a ocorrência de estresse oxidativo.
"Analisar a coexposição é importante porque as pessoas não estão em
contato com um só contaminante, mas com vários ao mesmo tempo. Eles atuam
juntos", diz o pesquisador.
Necessidade de investigação
Por e-mail, a Associação Brasileira da Indústria de Higiene
Pessoal Perfumaria e Cosméticos disse que "o estudo é muito
recente e existem variáveis importantes que precisam ser conhecidas/controladas
para poder analisar os resultados identificados."
Já a Associação Brasileira da Indústria Química enfatizou
que, sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente, a Comissão
Nacional de Segurança Química(CONASQ) está formulando um regulatório
nacional que dispõe sobre o cadastro, a avaliação e o controle de substâncias
químicas industriais.
Contatada pela BBC News Brasil, a Anvisa disse
adotar os limites apontados em avaliações conduzidas por autoridades
internacionais e que as listas de substâncias permitidas são resultado de uma
"harmonização entre os Estados do Mercosul e estão de
acordo com o que está sendo praticado em outros países ou blocos, como Estados
Unidos e Europa."
A agência disse que parabenos são conservantes "bem difundidos nas
indústrias e em alguns casos, de difícil substituição por questões de
estabilidade do produto, custos, etc.".
A Anvisa também disse já estar avaliando a redução da
quantidade permitida de alguns parabenos e afirmou ter solicitado ao Mercosul a
redução do limite de ftalatos permitidos em "materiais destinados ao
contato com alimentos para crianças de até três anos."
Questionada se a exposição simultânea é utilizada para definir os
limites aceitáveis dos compostos químicos destacados na pesquisa, a Anvisa disse
que "na maioria dos casos, os limites dizem respeito a análises
individuais."
Princípio da precaução
A diversidade de fontes, a dosagem e a análise dessas substâncias em
conjunto no organismo estão entre os principais desafios para os estudiosos do
tema hoje.
"Falta metodologia para dosar as concentrações desses compostos.
Pequenas contaminações ocorrem diariamente, já que eles estão presentes em
várias coisas. É importante analisar a intensidade das concentrações e o tempo
de exposição a elas. Se uma pessoa está exposta a grandes quantidades de forma
sistemática, haverá efeitos sobre a saúde", pondera Angela Maria
Spinola, endocrinologista pediátrica e professora da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp).
Ela enfatiza a necessidade de mapear e acompanhar as concentrações
destas substâncias com regularidade, o que não é feito em países como o Brasil.
"A meu ver, ainda não é possível fazer um prognóstico a partir dos dados
da pesquisa da USP. É preciso um acompanhamento em longo prazo para
verificar se as crianças brasileiras desenvolvem doenças a partir das altas
concentrações de alguns contaminantes", avalia Angela.
Alguns estudos indicam que a contaminação por parabenos e benzofenonas
também podem estar relacionados à puberdade precoce e ao aumento de câncer de
mama em indivíduos suscetíveis.
"Testes in vitro e em animais de laboratório mostraram que essas
substâncias têm ações estrogênicas (agindo como os esteroides sexuais
femininos) e antiandrogênicos (inibindo a ação de hormônios sexuais
masculinos). Os efeitos em humanos estão sendo estudados, por isso o princípio
da precaução é necessário", diz Denise.
Aplicado pela Anvisa na proibição do Bisfenol A, este
princípio prevê a adoção de medidas de proteção "sem ter que aguardar que
a seriedade dos riscos se torne aparente" sempre que haja "incerteza
sobre a existência ou amplitude dos riscos para a saúde humana".
"Devemos evitar contaminações, porque ainda não conseguimos definir
qual a dose mínima de desreguladores endócrinos que
não causam efeitos ruins no nosso organismo", avalia a professora da UFRJ.
Como se prevenir?
De acordo com especialistas ouvidas pela BBC News Brasil,
ações cotidianas podem contribuir para diminuir a exposição a desreguladores
endócrinos.
"É fundamental ler os rótulos dos produtos e procurar evitar
aqueles que tenham desreguladores em sua composição.
Principalmente mulheres grávidas, já que elas podem armazenar essas substâncias
no tecido adiposo e liberar para o feto através da placenta", diz Denise.
Outra recomendação se refere ao cuidado com o manuseio de embalagens de
alimentos.
"A contaminação dos alimentos pode ocorrer a partir de fissuras
causadas nas embalagens", explica Angela. Por isso, é
recomendado não esquentar ou congelar alimentos em recipientes ou embalagens
plásticas, priorizar vidro em vez de plásticos e evitar o consumo de alimentos
enlatados (cuja embalagem é revestida de bisfenol A).