Blog do Professor Márcio

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quinta-feira, 10 de julho de 2014

Território e Poder em Paracatu - Parte I

Prezado leitor,
Apresentamos uma série de dez artigos sobre as relações de poder na cidade de Paracatu - MG. A pretensão é contribuir para a melhor compreensão da dominação exercida pela mineradora Kinross Brasil Mineração sobre a sociedade paracatuense, que desde a sua formação, vive sob o signo da exploração de suas riquezas minerais, inicialmente pelos escravistas portugueses e paulistas e, na época recente, pelas transnacionais Rio Tinto Zinc e Kinross Gold Corporation.
Os artigos foram originalmente publicados no jornal local O Movimento, entre agosto de 2013 e julho de 2014.

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross

Márcio José dos Santos

Inicia-se aqui um despretensioso estudo das relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross. O objetivo é trazer o conhecimento de eminentes cientistas sociais para compreendermos o momento que estamos vivendo e, quiçá, trabalharmos para a construção de uma sociedade mais justa.

O viajante que chega a Paracatu, vindo de Cristalina, vê, primeiramente, aos pés da Serra da Boa Vista, a grande cava da mineração, as instalações industriais e os lagos de rejeito da Kinross; somente depois ele perceberá, ao lado, a cidade de Paracatu, que ficou pequena diante do complexo da mina. Mas é preciso uma longa permanência para ouvir os protestos isolados e quase sempre abafados daqueles que confrontam a mineradora: há os que se sentem beneficiados pelo empreendimento e uma grande maioria que prefere o silêncio: – qual seria o futuro da cidade se a mineração acabar?  – desemprego, perda de renda, perda de negócios? – como ficarão os impactos socioambientais à conta das futuras gerações?

O empreendimento mineral da RPM/Kinross em Paracatu deflagrou um processo de mudanças que interferem com várias dimensões e escalas da vida social da população do entorno: além de uma nova configuração patrimonial (mudança de proprietários), alteraram-se o regime hídrico, a morfologia do terreno, a qualidade de vida em seus aspectos sociais e ambientais e emergiram novos interesses, dinâmicas socioeconômicas e conflitos socioambientais.

Para o geógrafo Milton Santos, o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que estão acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam através de processos e funções.

A moldagem de uma nova ordem espacial é, sobretudo, resultante de uma relação de poder. No estudo das relações de poder existem duas abordagens que se prestam melhor para esclarecer as mudanças e conflitos que ocorreram em Paracatu a partir da instalação da Mina Morro do Ouro: a teoria da organização social e econômica, do sociólogo alemão Karl MaximilianWeber, e a teoria de poder e resistência, do filósofo francês Michel Foucault.

De acordo com Weber, o conceito de poder seria simplesmente a imposição da vontade de alguém em alguma situação. Melhor, então, pensar em disciplina, obediência e dominação. A diferença entre disciplina e dominação é que a disciplina é a obediência habitual, sem resistência nem crítica, enquanto a dominação é um estado de coisas pelo qual uma vontade manifesta do dominador influi sobre os atos de outros. Em um grau socialmente relevante, esses atos têm lugar como se aquele que dita as regras tem o direito de fazê-lo e aquele que se submete à elas tem o dever de obedecer.

Assim, Weber acreditava que as relações sociais se mantinham baseadas na dominação, uma dominação legítima, segundo ele, justificada por motivos de submissão ou princípios de autoridade. Isso o levou a distinguir três tipos de dominação: carismática - ocorre quando um líder domina pelas suas virtudes pessoais, que são vistas como extraordinárias pelos seus seguidores; tradicional - refere-se à tradição, àquilo que já vem sendo realizado e continua sendo feito, quando os seguidores aceitam o comando do líder como sendo o costume ou direito adquirido; racional-legal, que se aplica a empreendimentos econômicos, políticos, religiosos e profissionais e onde a legitimidade se dá pela crença e pela legalidade das normas e direitos de mando de quem exerce a autoridade.

Weber via a burocracia e a racionalização como o principal instrumento de dominação na sociedade moderna, capaz de estabelecer uma relação de poder quase indestrutível.

O teórico organizacional britânico Gareth Morgan, adotando as visões de dominação de Weber e dos filósofos alemães Marx e Michels, aponta como aspectos da dominação, entre outros:
- o sistema de classes, onde a existência de um mercado de trabalho secundário de baixa qualificação e baixa remuneração dá a uma organização muito mais controle sobre seu ambiente interno e externo;
- os perigos, doenças ocupacionais e acidentes de trabalho, principalmente em países do Terceiro Mundo, onde empresas transnacionais envolvem-se em práticas perigosas, livres das regulamentações sobre saúde impostas em seus países de origem, e
- as limitações da legislação, onde os agentes de segurança de empreendimentos de alto risco são pagos pela empresa em questão, estabelecendo-se assim o automonitoramento.

Para Morgan, são as multinacionais que estão mais próximas de concretizar os piores medos de Max Weber com relação a como as organizações burocráticas podem tornar-se regimes totalitários servindo aos interesses das elites, onde os detentores do controle podem exercer um poder praticamente indestrutível.

A crítica ao aspecto repulsivo da atuação das multinacionais no Terceiro Mundo é assim resumido por Morgan:
- o efeito das multinacionais sobre as economias das nações anfitriãs é basicamente de exploração;
- elas exploram as populações locais, usando-as como escravos assalariados, muitas vezes substituindo o trabalho sindicalizado;
- embora aleguem que estão levando capital e tecnologia para os países anfitriões, o resultado geralmente é uma saída líquida de capitais e o controle sobre a tecnologia que introduzem;
- frequentemente disfarçam o excesso de lucros e evitam pagar os impostos devidos para as nações anfitriãs por meio de ‘preços de transferência’;
- de modo geral fazem duras barganhas com as nações e comunidades hospedeiras, jogando um grupo contra o outro para conseguir concessões excepcionais.

Segundo Morgan, os críticos radicais das organizações atribuem parte da culpa da dominação das multinacionais às classes dominantes locais, por participarem da dominação, cooperando ativamente e muitas vezes envolvendo-se em acordos que as beneficiam à custa das comunidades e da nação.

Caro leitor, continue conosco no próximo capítulo, quando faremos uma abordagem da questão segundo o pensamento de Michel Foucault.

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 442, agosto de 2013, pág. 2.

Território e Poder em Paracatu - Parte II

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross
Márcio José dos Santos

No artigo anterior, vimos como o poder burocrático das grandes empresas transnacionais se impõe, especialmente em países mais fracos, e se torna quase indestrutível. Outra abordagem sobre dominação é a teoria de poder e resistência, em Foucault. Foi esse intelectual francês quem pela primeira vez dissecou as entranhas do poder, para nos revelar seu duplo aspecto.

Para Foucault, o poder não é somente repressão, barreira ou proibição, porque se assim fosse ele não seria obedecido, não se manteria; isto só é possível porque o poder permeia a sociedade, organiza-se em rede de apoio e de penetração, incita, seduz, forma saber e produz discurso. Seu elemento fundamental é a produção da verdade, isto é, tudo que emana do poder é acolhido como verdade, e esta verdade circula ligada ao sistema, produzindo efeitos de poder.

Foucault combate a ideia de que o poder é emanado de determinado ponto, que exista algo que seja um poder, porque isso não possibilita entender grande número de fenômenos. Para ele, ninguém é o seu único titular; no entanto, ele se exerce em determinada direção; não se sabe quem o detém, mas se sabe quem não o possui, pois onde há poder ele se exerce; vê-se quem explora, quem lucra, quem governa, mas o poder é algo ainda mais difuso, permeando as relações.

Por dominação, Foucault não entende apenas a dominação de um sobre os outros, mas sobretudo as variadas formas de dominação que são exercidas na sociedade, como o sistema do direito e o campo judiciário. Ao analisar o poder é preciso, então, evitar a questão da soberania e da obediência dos indivíduos e fazer aparecer em seu lugar o problema da dominação e da sujeição.

Para isto, o poder deve ser captado em suas extre­midades, nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em institui­ções, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de inter­venção eventualmente violenta. Ele é algo que circula, que só funciona em cadeia, nunca está localizado aqui ou ali, nas mãos de alguns, mas funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação, como centros de transmissão.

Ora, é então preciso fazer uma análise ascendente do poder a partir dos mecanismos infinitesi­mais e depois examinar como estes mecanismos de poder foram e ainda são investi­dos, utilizados, subjugados, desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global; investigar como o poder, para exercer-se nestes mecanismos sutis, forma e põe em circulação um saber, que produz o discurso da verdade.

Para investigar o poder é fundamental, então, investigar as resistências contra os dispositivos de poder, observar as estra­tégias antagônicas que se colocam, de uma ou outra forma, contra o mesmo. Sem resistência, não há relações de poder e tudo se resumiria a obediência.

Se o poder existe numa rede vasta e multiforme de rela­ções, os pontos de resistência também se apresentam como multiplicidade ou como “focos”, fragmentos que se distribuem no jogo das relações de poder. A resistência luta con­tra os saberes (do poder) que pretendem tomar para si todos os discursos que enunciam a verdade sobre o sujeito; faz oposição contra as formas de poder que separam os indivíduos entre si e daquilo que eles produzem e luta contra os dispositivos do poder que controlam as relações dos indivíduos.

Porém, constata-se que ainda hoje pouca atenção tem sido dada a um dos pontos centrais do pensamento de Foucault, qual seja investigar os novíssimos dispositivos de poder contemporâneos, por exemplo, os poderes midiáticos e as multinacionais como mecanismos de dominação fundamen­tais do mundo global, e também investigar os movimentos de resistência.

Nossa proposta, então, é refletir sobre o exercício do poder em Paracatu, sob os olhares de Foucault, Weber e Morgan, presa na malha que a domina e constrange. Acompanhe-nos, caro leitor!

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 443, de 1º a 15 de setembro de 2013, pág. 9.

Território e Poder em Paracatu - Parte III

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross
Márcio José dos Santos

Nos artigos anteriores fizemos uma breve exposição das teorias de poder com as quais pretendemos clarear as relações entre a mineradora RPM/Kinross e a sociedade paracatuense. Agora iremos discutir os conflitos gerados pela expansão desta empresa, as resistências contra os dispositivos de poder e as variadas formas de dominação que expressam essas relações.

O principal conflito provocado pela mineração no Morro do Ouro, e que permanece nos dias atuais, ocorre com as populações dos bairros vizinhos à mina, as quais, ao longo de mais de 25 anos, vêm sofrendo impactos negativos diretos em sua qualidade de vida e perda de patrimônio e território.

Nos primeiros anos de atividade da mina raramente se utilizavam explosivos, porque o minério era extraído em rocha alterada, desmontada apenas com uso de escavadeiras. Porém, nos locais onde aflorava a rocha dura, eram feitas detonações, utilizando-se pequenas cargas de explosivos. A zona de lavra ficava a uma distância de mais de 500 metros da zona urbana; entretanto, havia grande quantidade de poeira levantada pelas máquinas e caminhões, e o acesso à mina atravessava o bairro Amoreiras II.

Na imprensa, o primeiro registro deste conflito apareceu em 1991. Com o título “Explosões deixam crianças em pânico”, o jornal O Movimento publicou uma matéria em que o Defensor Público expôs as reclamações dos moradores quanto a rachaduras nas paredes e danos aos tetos das residências, com ameaças de desabamentos. Os moradores também reclamaram à reportagem dos estampidos das explosões que estariam colocando as crianças, em desespero. A matéria jornalística expôs a crítica de uma moradora, Abadia dos Santos, dizendo que a RPM era uma constante ameaça, pois seus gabaritados técnicos não avaliaram os prejuízos a serem causados às residências ou “será que acham que vamos ter de mudar de nossa terra para continuarem a explorar gananciosamente nosso ouro?”. Defendendo-se das acusações, o gerente de relações públicas da mineradora afirmou que o fogo utilizado nas explosões era de pouca potência – menos de uma tonelada de explosivos, o que não causaria os transtornos alegados pelos moradores. Porém, o fato é que o Defensor Público, apesar de afirmar que iria entrar com uma ação judicial contra a RPM, nunca o fez.

Com a expansão da lavra para as cercanias da zona urbana e alcançando zonas mais profundas do subsolo, o desmonte de rocha fresca passou a exigir cargas de fogo sempre mais potentes e o barulho das máquinas, trabalhando dia e noite sem interrupção, tendeu a aumentar. Vários movimentos de contestações foram surgindo, mas foram prontamente arrefecidos, seja pela ação da mineradora, seja pelo isolamento e espontaneidade das ações de resistência.

Exemplo persuasivo dos efeitos de poder da mineradora pode ser observado através dos autos do processo judicial 047006027038-1, instalado na Vara Criminal da Justiça Local no dia 10/04/2006, a partir denúncias feitas à Auditoria/Ouvidoria Linha Verde, órgão subordinado ao IBAMA, da poluição ambiental resultante das explosões na área de lavra, que estariam atingindo a população dos bairros periféricos à mina.

O BO 325/06 da PMMG afirma que foram realizadas medições sonoras, constatando-se ruído acima do permitido pela legislação. Apresenta também as justificativas da mineradora, alegando que o índice acima do limite legal provavelmente ocorreu por erro do aparelho ou procedimento inadequado de leitura. O histórico é concluído com a afirmação da engenheira de que a mineradora estaria comprando as propriedades vizinhas e isto levaria algumas pessoas a pressionarem a empresa “para venderem seus imóveis por um valor bem acima do valor de mercado, podendo ser o motivo que está ocasionando as denúncias”. Isto é, os moradores vizinhos é que estariam fazendo “barulho”.

Os autos foram conclusos para despacho do juiz em 17/04/2006, pedindo-se vista ao Ministério Público (MP) quanto ao pedido de prorrogação de 30 dias de prazo, solicitado pela Autoridade Policial, para a conclusão do Inquérito; logo a seguir, em 19 de abril, o MP opinou favoravelmente à concessão do prazo solicitado. Daí em diante, a tramitação deste processo é uma repetição cansativa de “autos conclusos para despacho”, pedidos de dilatação de prazo para conclusão do inquérito e concessão do prazo solicitado, de maneira que foram contados 45 andamentos do tipo “delegado-juiz-promotor-juiz-delegado”, sem que o processo tenha saído de onde começou... o inquérito policial.

Quando, em fevereiro de 2012, passados seis anos da instauração, o autor deste artigo pediu ao Fórum de Paracatu acesso ao processo criminal, foi informado de que este estava retido na Delegacia de Polícia desde 11 de março de 2010, isto é, “engavetado” durante quase dois anos pela autoridade policial.

Os fatos até aqui expostos exemplificam o funcionamento do poder que permeia a sociedade e se organiza em rede de apoio e de penetração; um poder que não precisa reprimir, uma vez que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições e as sujeita. No próximo artigo prosseguiremos no caminho dessa gente simples da vizinhança do Morro do Ouro, conhecendo melhor seus sofrimentos e suas lutas em busca de justiça e paz.

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 444, de 16 a 30 de setembro de 2013, pág. 2.

Território e Poder em Paracatu- Parte IV

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross
Márcio José dos Santos

Já mostramos que as contestações dos moradores vizinhos da mina da Kinross ocorrem desde o início da lavra, mas foram crescendo à medida que esta se aproximava de suas casas, o que os levou a buscar justiça para um direito garantido pela Constituição Brasileira (Art. 225): “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”  No entanto, seja o poder público, em suas várias instâncias, seja a própria coletividade, fingem ignorar o que ali acontece e transformam em letra morta uma das maiores conquistas da nossa Constituição.

No início de 2011, o Ministério Público de Minas Gerais anunciou em audiência pública um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Kinross, prevendo a adoção de medidas preventivas, reparatórias e compensatórias relativas aos impactos ambientais decorrentes da expansão da mina Morro do Ouro. Esse TAC foi alardeado como um novo paradigma de atuação do Ministério Público em relação aos empreendimentos minerários. As representações das sociedades civis e as comunidades dos bairros Amoreiras II, Bela Vista II e Alto da Colina, as mais impactadas pela mineração, compareceram em peso à audiência. 

Decepcionada, a população constatou que o TAC não estabeleceu medidas efetivas para mitigar ou eliminar os impactos que ela sofre; apenas medidas de monitoramento. Seus aspectos relevantes foram determinar um exame epidemiológico para constatar os efeitos da poluição ambiental (contaminação por arsênio), que seria iniciado no segundo semestre de 2011, e um investimento, a título de compensação dos danos ambientais causados pela mineradora, de apenas 12 milhões de reais. Pois bem, passados mais de dois anos, o exame epidemiológico não surgiu a público e nenhum centavo do recurso para compensar os danos ambientais beneficiou aqueles que os sofrem mais diretamente.

Em 2011, ano em que os impactos da mineração foram mais agudos, houve intensa movimentação das comunidades impactadas. Elas apresentaram uma pauta de reivindicações à Kinross, sendo a principal a de que a empresa compre os imóveis das residências adjacentes à mina, em um plano de desocupação continuada. Também a Câmara de Vereadores formou uma Comissão de Negociação, que se reuniu com a mineradora e representantes das comunidades. O único resultado foi a realização, pela Kinross, de um levantamento nos bairros. Dizem os moradores que a empresa contratada para este trabalho visitou as casas, mediu cômodos, tamanho dos lotes e benfeitorias. Ficaram todos na expectativa de uma proposta da mineradora para a aquisição dos imóveis, mas nunca houve qualquer manifestação ou resposta.

Recentemente, uma comissão integrada por pessoas que residem mais próximas da mina reuniu-se com o Prefeito, pedindo a sua intercessão. Porém, ao saberem desta iniciativa, os presidentes das associações de bairro procuraram o Prefeito e a Kinross para desqualificarem aquela comissão, afirmando que ela não representa as comunidades. Neste jogo de poder, mantê-lo parece mais importante do que dar solução às angústias e sofrimentos das pessoas.

Ao contrário, o que se vê é que a zona de impacto direto da mina transformou-se numa espécie de “Faixa de Gaza”: ali, nem mesmo a Prefeitura faz investimentos, existem várias casas sem saneamento básico, ninguém quer morar e os moradores que desejam sair não conseguem vender suas casas. Os imóveis perderam valor, pelas rachaduras, poeira, barulho, pelas doenças respiratórias e pela insegurança de quem vive esperando o pior.

Um traço comum às diversas classes e segmentos da sociedade brasileira é o pouco caso com que se tratam, ignorando os problemas que não lhes afetam diretamente. Isto é bem nítido na sociedade paracatuense, que não se importa com a situação das comunidades vizinhas à mina Morro do Ouro. Esta omissão nos parece clara quando se está vendo, assistindo, ouvindo e presenciando desfechos que são, a rigor, no sentido de remoção de comunidades que ali se estabeleceram muito antes do empreendimento da Kinross.

Existem quadras inteiras onde as habitações foram demolidas. Quando se afirma que as pessoas estão sendo “expulsas”, este termo se ajusta para melhor definir como tem se dado a apropriação desse território por parte da Kinross.  Nas propriedades adquiridas a mineradora derrubou as construções e árvores, criando um quadro de finitude e de impotência frente ao seu avanço.

     Para conhecer a realidade nua e crua das comunidades dos bairros vizinhos à mina da Kinross é preciso caminhar naquelas ruas poeirentas de casas simples e aspecto triste, conversar com as pessoas e indagar delas sobre a vida que levam. São pessoas desconfiadas, que a princípio avaliam o visitante: - será um agente da empresa, será um informante? Mas bastam alguns sorrisos e simpatia para que elas se abram a falar na vida dura que é morar ao lado daquilo que chamam “boca do inferno”.

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 445, de 16 a 31 de outubro de 2013, pág. 2.

Território e Poder em Paracatu - Parte V

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross
Márcio José dos Santos

Uma verdade aceita quase unanimemente em Paracatu é que a mineradora Kinross opera com processos cem por cento seguros e que cumpre fielmente a lei. Garantir que esta verdade seja acolhida como parte dos discursos que funcionam como verdadeiros é parte importante da estratégia de poder e domínio da mineradora. Hoje vamos apresentar um fato esclarecedor dessa estratégia, o qual ficou oculto da sociedade, para que não fosse arranhada a imagem de competência e responsabilidade socioambiental da Kinross.

Para que o leitor compreenda o fato, vamos explicar que a Kinross tem diversos pontos de captação de água para utilização em seu processo produtivo. Entre eles, um ponto importante é a Estação de Captação São Domingos, localizado abaixo da Barragem de Rejeito do Ribeirão Santo Antônio e próximo ao povoado Lagoa de Santo Antônio.

 Entre os dias 13 e 14 de novembro de 2012 ocorreu uma chuva intensa em Paracatu, com precipitação de quase 90 mm. Embora este volume de chuva seja apenas cerca da metade do maior valor histórico da cidade, de 176,3 mm, ocorrido em 13/12/1953, ele foi suficiente para destruir aquela barragem de captação. Não foram apenas as águas do Córrego São Domingos que ali se acumularam: juntaram-se as águas do Ribeirão Santa Rita e, o mais grave, as águas de extravasamento da Barragem de Rejeito.

Juntando-se ao evento natural da chuva, houve uma falha de gerenciamento. Os operadores da adutora deveriam ter aberto as comportas da barragem, quando todos percebiam tratar-se de chuva forte, mas não o fizeram. Em conseqüência, houve o rompimento da tubulação de 20 polegadas que liga a captação à barragem do Santo Antônio e a destruição da estrutura da captação.

Além dos danos materiais para a mineradora, houve sobretudo danos ambientais e patrimoniais para os proprietários vizinhos. O prefeito municipal, na época o Sr. Vasco Praça, esteve no local, acompanhado por outros moradores. Todos eles, inclusive o ex-prefeito, que é proprietário de imóvel rural no Santa Rita, tiveram danos às suas propriedades. Houve mudança de curso do Córrego São Domingos, desbarrancamentos, erosão de terras, refluxo de areia sobre terrenos de cultura, plantações foram destruídas. Os terrenos, cobertos pela lama, parte dela oriunda da barragem, ficaram imprestáveis para a continuidade de suas atividades de subsistência: plantios de cana, frutas e hortaliças. Mais que os danos em seus patrimônios, havia o medo sempre presente na comunidade: “se a mineradora não sabe cuidar de uma pequena estrutura de captação de águas, como estará cuidando da monstruosa barragem acima de nossas cabeças?”

Neste momento, tenho de lhe fazer uma pergunta, caro leitor: - Você soube deste acidente grave, inclusive envolvendo água contaminada da barragem de rejeito?

Aqui, então, vemos como o poder opera: exceto os moradores do local, ninguém soube do ocorrido. As malhas do poder impedem a circulação de notícias que podem contrariar a “verdade” estabelecida, a verdade não existe fora do poder.

Ao constatar que ocorrera um fato grave, com potencial de autuação pelo órgão ambiental e repercussão na mídia, a Kinross acionou o seu mecanismo de controle de crise, restringiu a entrada de pessoas no local e determinou a forma de notificação dos órgãos ambientais, minimizando-se o acidente. Está aí o fiel cumprimento da lei!

Nenhuma notícia vazou na mídia escrita ou falada. Em pouco tempo a adutora voltou a funcionar, nas mesmas condições anteriores. O meio ambiente não foi reparado e não há cuidados de prevenção para que o fato não venha a se repetir. Ora, quem trabalha com engenharia hidráulica sabe que não apenas a chuva intensa se repetirá, mas que pode, inclusive, alcançar o máximo já registrado em Paracatu. O que poderá ocorrer se a chuva cair em dobro?

Resignados e dominados, nenhum proprietário pediu ou teve reparação de danos, nenhum deles ousou reclamar. “Reclamar pra quê”, dizem eles, “tudo vai continuar como sempre foi!”. 

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 446, de 1º a 15 de novembro de 2013, pág. 2.

Território e Poder em Paracatu - Parte VI

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross

Márcio José dos Santos

A divulgação pela imprensa (O Movimento, ed. 446) de que o Ministério Público Federal (MPF) realizou vistoria na mina e demais instalações da Kinross, cobrando resposta a 37 quesitos do processo de extração mineral, teve ampla repercussão em Paracatu. Para resguardar junto ao público a sua imagem, a mineradora desencadeou uma campanha “esclarecedora”, procurando apaziguar as preocupações quanto a suspeita de contaminação ambiental. Um dos temas desta propaganda, o cianeto, é objeto deste artigo.

O procurador do MPF, Dr. José Ricardo Teixeira Alves, afirma que durante a vistoria os técnicos da empresa informaram que a solução contendo cianeto não é totalmente destruída após o processo de produção e vem sendo armazenada nas barragens de rejeitos. Esta informação não é novidade, pois desde o início do Plano de Expansão da Kinross, em 2007, já denunciávamos esta situação, mas o órgão ambiental que licenciou a Barragem do Machadinho ignorou a denúncia.

Em resposta à ação do MPF, na sua campanha de mídia, como a Kinross resolveu tratar esta questão? Primeiro ela expõe na sua propaganda que “O cianeto é um composto químico com degradação natural, usado há mais de 100 anos na mineração de ouro e prata, por ser um método mais sustentável”. É uma verdade que termina com uma mentira: a cianetação é um método usado não por ser mais sustentável, mas por ser mais barato e tecnologicamente mais fácil de operar. O termo sustentável, usado abusivamente pela indústria mineral, não cabe aqui.

Entretanto, o que mais surpreendeu o autor deste texto foi a apresentação de um sistema denominado DETOX, que a mineradora indica como sendo de “alta tecnologia que destrói o cianeto”. Ora, durante os 27 anos que opera a Mina Morro do Ouro a empresa sempre afirmou (e continua afirmando) que o cianeto sofre um processo de degradação natural, pela ação da luz solar, não sendo necessária sua inativação antes de os efluentes seguirem para a barragem.

Ora, há mais de dez anos publicações científicas já mostravam que na Europa todas as minas de ouro que operam com processo de cianetação empregavam processos DETOX. Elas são obrigadas a tratar rejeitos para reduzir os níveis de cianeto antes de serem descarregados para tanques de armazenamento, para atender às rigorosas diretrizes de gestão ambiental da União Europeia. Portanto, é uma tecnologia que estava disponível quando a Kinross resolveu ampliar a mina, em 2005.

Mesmo aqui no Brasil, uma pequena mina de ouro, implantada no município de Riacho dos Machados, norte de MG, por outra empresa canadense (Carpathian), iniciou sua atividade com o processo DETOX funcionando...

Então, caro leitor, nós que sempre demos ouvidos à comunicação social da Kinross, admitindo que o processo DETOX tenha sido instalado nestes últimos dias (?), vamos perguntar por que a mineradora não destruía o cianeto após o beneficiamento, se a tecnologia já estava disponível? Para diminuir custos? Não basta que a empresa afirme ter sido a primeira mineradora brasileira a assinar o Código Internacional de Gestão do Cianeto, é preciso ter boas práticas de gestão.

É fato que os países chamados “desenvolvidos” têm legislação rígida sobre mineração versus meio ambiente, o que não acontece no Brasil, onde além de uma legislação fraca, são as próprias mineradoras que se automonitoram. Mas, se a atuação da Kinross é focada em responsabilidade e transparência junto à comunidade, como afirma sua comunicação social, este descaso sobre o potencial tóxico do cianeto é condizente com o que ela afirma?

E quando falamos em transparência, será que todos nos entendemos sobre o significado disto? Quando é, caro leitor, que você teve acesso aos dados de monitoramento da poeira fugitiva da mina e das águas superficiais e subterrâneas do seu entorno? Se meio ambiente saudável é direito do cidadão, consagrado pela Constituição Brasileira, não teria ele direito a ter acesso a esses dados? Sendo assim, este direito não estaria sendo violado? Existem caminhos legais (e autoridades responsáveis) para cobrar este direito?


A iniciativa do Ministério Público Federal é, sem dúvida, digna de louvor, neste poço de omissões, meias-verdades e deslavadas mentiras onde afunda o meio ambiente de Paracatu. 

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 448, de 1º a 15 de dezembro de 2013, pág. 2.

Território e Poder em Paracatu - Parte VII

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross
Márcio José dos Santos

Um dos aspectos mais desconcertantes nas relações da Kinross com a comunidade paracatuense é o trato da questão do arsênio. A presença de arsênio no minério, em teores mais de 5.000 vezes superiores ao do ouro, deveria ter sido considerada, desde o início da atividade da mina, como perigosa e, sendo assim, um plano de gestão de risco ambiental deveria integrar-se ao plano de exploração. Ao contrário, a mineradora passou anos negando a existência do arsênio e, quando não pode mais fazê-lo, passou a desqualificar o problema, sob as vistas grossas das autoridades.

Na sua campanha de “esclarecimento à população”, a Kinross inseriu uma propaganda nos jornais de Paracatu, onde se lê (O Movimento, ed. 447): “A Kinross não usa arsênio em suas atividades. Faz parte da composição das rochas de Paracatu, sem oferecer risco para a população.” Ora, ninguém em sã consciência acusa a mineradora de utilizar arsênio em suas atividades; também é de conhecimento geral que o arsênio, enquanto faz parte da composição das rochas, não oferece risco à população. Mas sabemos, e os dirigentes da mineradora também sabem, que durante o tratamento químico do minério o arsênio, que antes estava numa forma não tóxica (sulfeto de arsênio), é liberado na forma de óxidos. São os óxidos de arsênio, extremamente tóxicos, produzidos pelo tratamento químico de milhões de toneladas de minério, que estão envenenando o ambiente numa escala jamais vista na face da Terra.

Mas então, caro leitor, como esse arsênio venenoso pode vir parar no seu sangue, no seu fígado, nas suas entranhas? Os principais caminhos são a água, os alimentos que você consome e o ar que você respira.

Nos países onde a legislação ambiental é menos frágil que a nossa, as instalações de rejeitos operam em circuito fechado, isto é, não liberam água de decantação do material depositado para a drenagem abaixo das barragens; além disso, há um efetivo monitoramento ambiental abaixo das barragens, principalmente a água subterrânea, e as análises ficam disponíveis nos informes anuais das empresas de mineração.

Em situação oposta, as barragens da Kinross não operam em circuito fechado, mas liberam, deixam infiltrar ou deixam extravasar água, cujos parâmetros de qualidade não são acessíveis ao público. Abaixo das barragens encontram-se populações e produtores rurais, os quais utilizam esta água para uso próprio, dessedentação de animais e produção agrícola. Quais os riscos de contaminação diante da disseminação do arsênio através da água?

Uma contaminação mais direta da população urbana se dá através do ar, que espalha nos arredores a poeira da mina. Não é apenas a poeira surgida nas detonações; vamos falar aqui de uma poeira mais insidiosa. Há muitos anos, e em volumes crescentes, sobe ao ar a poeira das estradas de terra do interior e das cercanias da Mina Morro do Ouro. Para diminuir a quantidade de poeira, da qual se queixa a população de Paracatu, a mineradora faz aspersão de água nas vias de trânsito. Mas, de uma maneira absurda, inconseqüente, os caminhões pipa colhem água em abastecedores nos tanques da área de lavra ou nas barragens. Ora, especialmente na área de lavra (Tanque C) a água é altamente contaminada por metais pesados e arsênio; é a chamada drenagem ácida de mina (DAM), que por esta condição não poderia sair do circuito. No entanto, quando esta água é aspergida nas vias, logo que a poeira seca ela é levantada pelo trânsito. Sobe ao ar carregando arsênio e metais pesados, os quais, soprados pelo vento, despejam-se sobre as áreas vizinhas.

Repetindo, caro leitor, para que não fiquem dúvidas: ao utilizar água dos tanques da área de lavra (tanques de DAM) e das barragens de rejeito para aspersão nas estradas, com vistas a conter poeira, a mineradora pratica uma agressão ambiental, porque a água de DAM tem que circular em circuito fechado. Ao aspergi-la nas estradas, a poeira levantada pelo trânsito de máquinas e caminhões levará consigo metais pesados, arsênio e cianeto (oriundo da água da barragem), espalhando os elementos tóxicos na poeira que sai da mina, contaminando o ar que você respira.

Vida, sobrevivência e morte estão profundamente afetadas pela exploração mineral que, desde 1987, tem impactado a comunidade com efeitos nocivos de agentes químicos e destruição ambiental, por vezes irreversíveis. A mineradora Kinross não pode continuar negando legitimidade às preocupações da população de Paracatu quanto aos efeitos deletérios de suas práticas ambientais.

Em vários países, especialmente onde se encontram as matrizes de mineradoras transnacionais, inúmeros programas e projetos que prevêem soluções práticas e economicamente viáveis têm sido implementados, na expectativa de diminuir as incertezas e os riscos de seus empreendimentos. Os riscos estão no cotidiano das pessoas e, por isso, todos os envolvidos têm legitimidade para definir e propor soluções para os problemas que os afetam. A propaganda hipócrita e enganosa, que trata a população paracatuense como tupiniquins ignorantes, põe em relevo o interesse sórdido de continuar jogando a poeira para baixo do tapete, ao invés de reconhecer nela um interlocutor legítimo para um processo de gestão e enfrentamento do desastre ambiental em Paracatu.

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 450, de janeiro de 2014, pág. 2.

Território e Poder em Paracatu - Parte VIII

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross
Márcio José dos Santos

O relacionamento da mineradora Kinross com as instituições públicas é uma peça chave do exercício do poder. Já afirmamos inicialmente que dominação não pode ser entendida apenas como o poder de uns sobre outros, mas as variadas formas de dominação que são exercidas na sociedade, incluindo o sistema de direito e o campo judiciário. O poder não seria obedecido, não se manteria, se utilizasse apenas a repressão e a negação; muito além disto, ele se organiza em linhas de penetração no tecido social e exerce um fascínio sobre aqueles que pretende conquistar.

Já transcorreram quase três décadas desde que a lavra iniciou-se no Morro do Ouro. Durante esse período, a mineradora enfrentou momentos difíceis, em conflitos socioambientais com proprietários e comunidades vizinhas à mina. Entretanto, ela sempre teve ao seu lado os aparelhos do Estado, em todos os níveis, o que lhe garantiu triunfar sobre os adversários.

Vamos tratar aqui da relação especial da mineradora Kinross com a guarnição local da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG). Estamos falando de uma instituição pública, cuja missão é promover a segurança pública, com respeito aos direitos humanos e participação social.

Não é a primeira vez que este assunto é abordado na imprensa paracatuense. Uma denúncia bastante enfática do jornal local Noroeste News, de fevereiro de 2012, afirmava que a PMMG deslocava parte de seu efetivo para vigiar as dependências da empresa, para reprimir garimpeiros, e deixava a cidade desguarnecida. O autor da nota claramente denunciava desvio de conduta da polícia e pedia investigação.

Embora a denúncia acima referida tenha sido realizada em fevereiro de 2012, a PMMG não apenas a ignorou, mas continuou a prestação de serviços à mineradora Kinross, conforme esclareceremos em seguida.

No decorrer de cada mês, cerca de dez a doze viagens são feitas para transportar a produção da Mina Morro do Ouro. Como se trata de empresa particular, cujos lucros são apropriados pelos detentores de seu capital, seria de esperar que o serviço de transporte de valores fosse integralmente assumido pela mineradora. Porém, todos os carregamentos são acompanhados por uma escolta da PMMG, em suas viaturas. Naquele ano de 2012, a mineradora pagou, para cada serviço de escolta, incluindo os custos dos deslocamentos das viaturas, uma “taxa de segurança” no valor R$326,12 (trezentos e vinte e seis reais e doze centavos).

Em 2012 foram registrados, apenas no período janeiro a outubro, 102 escoltas da PMMG. Por outro lado, como ficou a segurança pública na cidade de Paracatu? Viveu-se aqui um clima de tranqüilidade, de diminuição dos índices de violência, do crescimento da proteção que a Polícia Militar deve proporcionar à sociedade?

Essas perguntas são procedentes. Fazer dez escoltas por mês, deslocando efetivos e viaturas, para proteger bens privados, poderia ser compreensível (mas não é) se estivéssemos em uma comunidade segura, bem protegida. A PMMG continua a fazer escolta nos dias atuais; enquanto isso, temos assistido a cidade se transformar num local cada dia mais violento e crescer a desconfiança generalizada da população sobre a competência das forças policiais na redução da criminalidade.

Além dos serviços de escolta dos carregamentos da produção aurífera, a mineradora conta com a participação efetiva da PMMG na proteção do território da mina. Para agilizar sua presença, em segundos pode ser acionada a policia, via rádio. Voltando ao ano 2012, na noite de 20 de agosto a segurança da mina chamou a PM para reprimir pessoas que se arriscavam a retirar ouro da lama do rejeito, tendo a polícia alvejado um garimpeiro. No dia seguinte, a PM já estava pronta para escoltar mais um carregamento da Kinross.

É certo que nenhum cidadão ou empresa paracatuense tem tais privilégios, oferecidos pelo Estado a preços tão ridículos. Mas, acredite caro leitor, isto é feito de maneira legal. Tudo se torna compreensível quando se entende como e para quem a lei funciona, penalizando uns e beneficiando outros.

Voltando à análise dos fatos, fica claro que a rede de poder funciona em canais de mão dupla. Não se trata de puro privilégio, mas de troca. Benefícios são concedidos pela empresa à instituição policial (veículos, equipamentos) e à associação dos policiais, de maneira que a opulência do ouro também exerce o seu fascínio sobre a gloriosa Polícia Militar de Minas Gerais. 

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 451, de 1º a 15 de fevereiro de 2014, pág. 2.

Território e Poder em Paracatu - Parte IX

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross
Márcio José dos Santos

Em 18 de março passado, fomos surpreendidos pela convocação de uma audiência pública para a apresentação de um estudo epidemiológico a respeito de contaminação por arsênio em Paracatu. Tomamos conhecimento dos resultados através da imprensa: não há contaminação ambiental em Paracatu e, muito menos, pessoas vitimizadas por ela. O jornal O Movimento foi o único a levantar questionamentos; de resto, a imprensa “chapa branca” deixou claro que a sociedade paracatuense pode ficar tranqüila, porque temos um meio ambiente saudável e puro, apesar de vivermos ao lado da maior mina de ouro a céu aberto do mundo.

Através de um vídeo que circula na Internet, temos os depoimentos de agentes públicos, que também asseguram a tranquilidade. O promotor de meio ambiente em Paracatu comentou: “Naquilo que estava a sociedade alarmada, com câncer, com arsênio causando câncer, isso a sociedade pode ficar tranqüila, porque nessa pesquisa não houve qualquer indicador que pudesse trazer preocupação.”

Quer dizer então, caro leitor, que foi tudo alarme falso? A confiarmos naquilo que foi apresentado, sim. Mas, siga comigo nos questionamentos seguintes.

A Prefeitura Municipal (administração anterior, 2010) contratou, para a realização do estudo epidemiológico a Fundação de Ciência, Aplicações e Tecnologia Espaciais (FUNCATE), instituição que não tem estrutura e nem quadros qualificados, e que jamais realizou tal tipo de trabalho. Por não ter competência para a realização de estudo epidemiológico, a FUNCATE fez parceria com o CETEM - Centro de Tecnologia Mineral – que também não tem competência nesta área, uma vez que sua especialidade são estudos de beneficiamento mineral. Daí, nosso primeiro questionamento: por que contratar empresas sem qualquer experiência documentada em estudos clínico-laboratoriais de intoxicação crônica de populações humanas por arsênio e outros contaminantes ambientais?

Entretanto, poderíamos relacionar dezenas de instituições brasileiras com experiência e competência em estudos epidemiológicos, em especial universidades públicas e a Fundação Osvaldo Cruz. Mas, a Prefeitura contratou, sem licitação e sem apresentação de orçamento detalhado, duas empresas sem competência nesta área. Uma delas, o CETEM, que desde o início da lavra na Mina Morro do Ouro em Paracatu até os dias atuais, tem prestado serviços como contratado da mineradora Rio Paracatu Mineração e sua sucessora Kinross. Essa relação histórica, direta, estreita, intensa e persistente entre Kinross e CETEM claramente o desqualifica para executar um estudo cujos resultados poderiam, em princípio, trazer enorme prejuízo à Kinross. O conflito de interesses aqui é evidente.

Pelo fato de contratar sem licitação, utilizando recursos do governo federal para a realização do estudo epidemiológico, o Ministério Público Federal abriu o Inquérito Civil Público número 1.22.006.000288/2010-20, ao qual responde a Prefeitura Municipal.

Nenhum de nós, cidadãos comuns de Paracatu, jamais teve acesso ao relatório do estudo epidemiológico. Esta é uma situação que fere um princípio da Ciência, porque qualquer trabalho que se pretenda científico tem que ser apresentado em fórum adequado para que seja analisado, contestado ou validado. Levado a uma “audiência de cartas marcadas” de um grupo disposto a acreditar, a “publicação” dos resultados e conclusões do estudo foi precipitada, ferindo a ética e o modus operandi da Ciência.

Também feriu o princípio da transparência da administração pública, pois o estudo foi contrato pela Prefeitura, usando recursos públicos, e, como tal, uma cópia de inteiro teor deveria ser disponibilizada ao público. Aí, então, poderíamos avaliá-lo, porque nesta questão do arsênio não somos apenas interessados, podemos também ser vítimas. Uma audiência pública com a presença de leigos, promotores desinformados e políticos sugestionados, sem documentos que possam ser analisados, não é fórum adequado para assunto desta relevância.

Pelo que pudemos saber a partir daquilo que foi divulgado, um dos procedimentos metodológicos da pesquisa – dosagens de arsênio em amostras de cabelo humano – não é confiável, porque estão sujeitas a erros sistemáticos e não permitem a reprodução das análises. Por isto, nenhum estudo epidemiológico clínico-laboratorial sério pode ser baseado em medições feitas a partir de amostras de cabelos, como se fez em Paracatu.

Uma situação intrigante é constatar que, enquanto a representante do CETEM na Audiência afirmou que “a população não está exposta a níveis de arsênio acima dos limites estabelecidos”, o prefeito municipal, entrevistado pela imprensa, disse que existem “áreas de contaminação a índices aceitáveis” e que “vamos começar a trabalhar para que esse índices comecem a baixar”. Ora, tem algo turvo nestas afirmações: o que seriam essas áreas de contaminação? Se estão contaminadas, isto seria aceitável?

Mas, as pérolas que reservamos para o final deste texto são os depoimentos de dois vereadores. Um deles afirmou: “Como comentei na Tribuna, são pessoas de má-fé que alarmam a nossa comunidade; nós, vereadores, estamos cobrando, e você em casa pode ficar tranqüilo, porque em relação ao arsênio nós estamos controlados”. Pois bem, senhor vereador, “pessoas de má-fé” são pessoas como eu, que exercem seu direito de cidadão de questionar o poder de mando que subjuga nossa cidade? Os vereadores estão cobrando – cobrando o quê? – se o senhor mais não faz que tentar ofender a quem cobra àqueles que contaminam para auferir lucros?

Outro vereador afirma, cheio de fé: “Hoje, aquele medo, aquele mito, foi de fato extinto, porque em pesquisa, com dados, a gente não questiona. Pesquisa a gente respeita e aceita.” A fé não comporta dúvida. Então, pesquisa é como um documento religioso, sagrado: não pode ser questionada e aceitá-la é um ato de fé.

Disciplina, obediência e dominação – são os aspectos do exercício do poder, de acordo com o sociólogo alemão Max Weber. Nada mais simbólico do poder da Kinross sobre a sociedade paracatuense do que a Audiência Pública de 18 de março.

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 457, de 16 de maio a 20 de junho, pág. 2.

Território e Poder em Paracatu - Parte X

Estudando as relações entre a comunidade paracatuense e a mineradora RPM/Kinross
Márcio José dos Santos

Esta série de artigos chega ao seu final e a intenção é encerrá-la com uma auto-análise. O objetivo proposto no primeiro texto, publicado em agosto de 2013, foi expor as relações entre a mineradora RPM/Kinross e a sociedade paracatuense, para analisá-las à luz de teorias do poder. Mesmo reconhecendo as limitações deste autor, essas análises são pontos de vista importantes ao se considerar que não partem de um observador que tenta ser neutro, mas que expressa de maneira clara o seu próprio olhar, como forma de resistência contra a degradação ambiental de Paracatu.

Pela publicação desta série, pouquíssimas pessoas se manifestaram e algumas que o fizeram, quase como condolências, me perguntavam: - Você acha que muitas pessoas lêem seus artigos?; ou - Qual o tipo de leitor que lê os seus artigos? ou ainda, - Qual o efeito dos seus artigos?

Alguns leitores são o que se chama “formadores de opinião”: analisam, discutem, repercutem e tomam posição. Mesmo que tomem posição contrária, ninguém sai ileso de uma leitura em que os argumentos se apóiam na razão. E os artigos desta série têm sido quase o único contraponto à imensa e avassaladora propaganda da Kinross.

Durante quase um ano estivemos presentes na imprensa expondo a rede de poder da Kinross e as conseqüências nefastas da dominação imposta à sociedade paracatuense: os impactos sobre as populações dos bairros periféricos à mina, com as explosões, barulho e poeira tóxica; a demolição de bairros e expulsão de moradores; as omissões, a complacência ou até mesmo o conluio de órgãos e autoridades públicas em suas várias instâncias, como aqueles que se envolveram para maquinar um Termo de Ajustamento de Conduta da Kinross ou para contratar um estudo epidemiológico de fachada, à custa do erário público; o envolvimento da PMMG em serviços de escolta de carregamento de ouro, policiamento das áreas internas da mina e até mesmo a montagem de um absurdo e ilegal sistema via rádio, ponto a ponto, uma espécie de “telefone vermelho” entre a Kinross e a PMMG; os danos ambientais e patrimoniais resultantes do mau gerenciamento da estação de captação de água do São Domingos; a má gestão ambiental da poeira fugitiva da mina, com utilização de aspersão de água contaminada; os efluentes contendo arsênio, metais pesados e produtos químicos tóxicos que circulam em sistema aberto, ao contrário das barragens mais seguras; os efluentes contendo cianeto, que até hoje não passam por sistema de tratamento “detox”, para reduzir os custos do beneficiamento do minério e aumentar os lucros da empresa; a falta de transparência da mineradora, que esconde do público os resultados do monitoramento ambiental...

Como se vê, não é pouca coisa. Mas, vamos ser realistas: poucas pessoas lêem meus artigos e dos poucos que lêem somente alguns concordam com meus pontos de vista. Mas, para mim, não é isto que conta!

Sabe o que conta? Em menos de 20 anos, a mina Morro do Ouro estará esgotada. Restará, do ouro e do esplendor, uma cratera cheia de água tóxica, terras desoladas, ambiente contaminado e gente triste, velha, desiludida e conformada. Os jovens que ficarem por aqui ouvirão histórias fantásticas sobre o que foi levado, e alguns irão perguntar: - Ninguém brigou, ninguém protestou? Todos se iludiram? Não havia pessoas conscientes?

Sim, caro leitor, está aí uma coisa que conta: as gerações futuras certamente darão valor às vozes do passado, que não se calaram. É preciso ter um registro delas, para que não se percam, e é isto que estamos fazendo aqui.

Isto não seria possível sem o espaço democrático do jornal O Movimento. Em todos os artigos publicados, jamais houve uma palavra censurada ou questionamentos dos seus conteúdos. Portanto, tenho grande satisfação de expressar agradecimentos a O Movimento, a seus proprietários e colaboradores, que dão mostra da legítima liberdade de expressão, no dizer de George Orwell: “Liberdade de expressão é poder dizer aquilo que o outro não quer ouvir”.

Finalizando, para responder sobre o efeito desta série na sociedade, não teremos aqui uma resposta típica de jogador de futebol, cujo time está perdendo: - O jogo está difícil, mas no segundo tempo a gente ‘vamos’ lutar e virar o jogo! Não: este jogo é diferente, já se sabe desde o início quem vai ganhar e quem vai perder. A história é sempre contada pelos vencedores, e a mineradora Kinross continuará escrevendo a história da cidade. Pelo menos enquanto durar a ilusão dos perdedores, até que o ouro se esgote e a mineradora se vá. Mas, embora seja um jogo de cartas marcadas, não estamos aqui para entregar o jogo, sem luta e sem voz. 

Este texto foi publicado no jornal O Movimento, ed. 458, de 11 de junho a 20 de julho de 2014, pág. 2.